Pareceres do CRLisboa

CONSULTA 7/2019

Análise ao Parecer emitido pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados, proc. 14/PP/2018-G


 

I
INTRODUÇÃO


 

No dia 28 de setembro de 2018, reunido em sessão plenária, o Conselho Geral da Ordem dos Advogados deliberou aprovar o parecer emitido no âmbito do processo n.º 14/PP/2018-G, em que foi relator o Dr. Zacarias Carvalho, segundo o qual “(n)os termos do disposto no artigo 83º, n.ºs 1, 2 e 6, do Estatuto da Ordem dos Advogados, os advogados estão impedidos de exercer a advocacia e, assim, impedidos de exercer o mandato forense ou a consulta jurídica, para entidades para quem exerçam, ou tenham exercido as funções de Encarregado de Proteção de Dados”.


 

 II BREVE ENQUADRAMENTO SOBRE A FIGURA DO ENCARREGADO DE PROTEÇÃO DE DADOS

 

O Regulamento (EU) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, doravante designado “Regulamento” ou “RGPD”), criou a figura do Encarregado de Proteção de Dados (“EPD”) ou “Data Protection Officer” (“DPO”).

 

O EPD é a pessoa (ou conjunto de pessoas) que dentro de uma organização [1] promove, de forma independente, o cumprimento das normas sobre proteção de dados pessoais e que zela pelo respeito pelos direitos dos titulares dos dados pessoais (cf. arts. 37.º a 39.º, do RGPD).

A existência de um EPD dentro de cada organização é obrigatória em certos casos [2], sendo, no entanto, a sua nomeação recomendada mesmo fora destas situações [3].

 

Nos termos do art. 37º, n.º 5, do RGPD, o EPD “é designado com base nas suas qualidades profissionais e, em especial, nos seus conhecimentos especializados no domínio do direito e das práticas de proteção de dados, bem como na sua capacidade para desempenhar as funções”.

 

O EPD deve ser “envolvido, de forma adequada e em tempo útil, em todas as questões relacionadas com a proteção de dados pessoais” (cf. artigo 38.º, n.º 1, do RGPD). De acordo com o art. 39º, n.º 1, do RGPD, o EPD “tem, pelo menos, as seguintes funções:

a) Informa e aconselha o responsável pelo tratamento ou subcontratante, bem como os trabalhadores que tratem os dados, a respeito das suas obrigações nos termos do presente regulamento e de outras disposições de proteção de dados da União ou dos Estados-Membros;

b)
Controla a conformidade com o presente regulamento, com outras disposições legais de proteção de dados da União ou dos Estados-Membros e com as políticas do responsável pelo tratamento ou do subcontratante relativas à proteção de dados pessoais (…);

c)
Presta aconselhamento (…) no que respeita à avaliação de impacto sobre a proteção de dados e controla a sua realização (…);

d)
Coopera com a autoridade de controlo;

e)
Ponto de contacto para a autoridade de controlo sobre questões relacionadas com o tratamento”.

 

O EPD pode ainda ser contactado pelos “titulares dos dados (…) sobre todas as questões relacionadas com o tratamento dos seus dados pessoais e com o exercício dos direitos que lhe são conferidos pelo” RGPD (cf. art. 38º, n.º 4, do Regulamento).

 

O EPD pode ser um trabalhador da organização “ou exercer as suas funções com base num contrato de prestação de serviços” (cf. art. 37º, n.º 6, do RGPD).

 

Os EPD “sejam ou não empregados do responsável pelo tratamento, deverão estar em condições de desempenhar as suas funções e atribuições com independência” (cf. considerando § 97, do RGPD).

 

A organização deve assegurar que o EPD “não recebe instruções relativamente ao exercício das suas funções” e “não pode ser destituído nem penalizado pelo responsável pelo tratamento ou pelo subcontratante pelo facto de exercer as suas funções” (cf. artigo 38.º, n.º 3, do RGPD).

 

Nos termos do art. 38º, n.º 6, do RGPD, o EPD pode exercer outras funções e atribuições na organização desde que o exercício das mesmas não resulte num conflito de interesses com as funções inerentes a esse estatuto.

 

O EPD encontrar-se-á numa situação de conflito de interesses sempre que o exercício de uma determinada função possa comprometer a sua idoneidade para exercer as funções de EPD de forma imparcial.

 

Deste modo, o EPD não poderá exercer dentro da organização funções que envolvam a definição das finalidades ou dos meios de tratamento de dados pessoais, como também não poderá exercer funções que impliquem a aplicação das medidas técnicas e organizativas que forem necessárias para assegurar que os tratamentos de dados pessoais são realizados em conformidade com o RGPD. Compreende-se que assim seja, na medida em que estas são obrigações que competem ao responsável pelo tratamento [cf. artigos 4.º, ponto 7), e 24.º, n.º 1, do RGPD] e cuja conformidade deve ser controlada pelo EPD [cf. artigo 39.º, n.º 1, alínea b), do RGPD]: a fim de assegurar a sua imparcialidade no exercício das funções de EPD é necessário que sobre o EPD não recaia, simultaneamente, o ónus de cumprir as obrigações consagradas no RGPD para o responsável pelo tratamento e o ónus de fiscalizar o cumprimento de tais obrigações.

 

Sobre esta matéria, o Grupo de Trabalho do Artigo 29 [4] abordando a questão do exercício das funções de EPD por advogado, refere que “pode igualmente surgir um conflito de interesses se, por exemplo, um EPD externo for chamado a representar o responsável pelo tratamento ou o subcontratante perante os tribunais no âmbito de processos respeitantes a questões de proteção de dados[5].




III
INCOMPATIBILIDADES, IMPEDIMENTOS E CONFLITOS DE INTERESSE NO ÂMBITO DO EXERCÍCIO DA ADVOCACIA

 

O Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante, designado “EOA”) [6] estipula, como princípios gerais, que “[o] advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável” e que “[o] exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou atividade que possa afetar a isenção, a independência e a dignidade da profissão” (cf. art. 81.º, n.os 1 e 2, do EOA).

 

O art. 82.º, n.º 1, do EOA enuncia, a título exemplificativo, cargos, funções e atividades que são, em termos absolutos, incompatíveis com o exercício da advocacia.

 

Nos termos do art. 188.º, n.º 1, alínea d), do EOA, “não podem ser inscritos (…) os que estejam em situação de incompatibilidade”, assim como o advogado deve “suspender imediatamente o exercício da profissão e requerer, no prazo máximo de 30 dias, a suspensão da inscrição na Ordem dos Advogados quando ocorrer incompatibilidade superveniente” [cf. art. 91.º, alínea d), do EOA].

 

Deste modo, o advogado fica impedido de exercer a profissão sempre que se verifique uma situação de incompatibilidade.

 

Para além destas incompatibilidades, o EOA prevê também impedimentos ao exercício da advocacia. Os impedimentos “constituem incompatibilidades relativas do mandato forense e da consulta jurídica”, na medida em que apenas impedem o advogado de exercer a profissão num determinado contexto, “tendo em vista determinada relação com o cliente, com os assuntos em causa ou por inconciliável disponibilidade para a profissão” (cf. art. 83.º, n.º 1, do EOA).

 

Verificar-se-á uma situação de impedimento sempre que a prática de atos profissionais ou o exercício de influência pelo advogado junto de uma determinada entidade, pública ou privada, onde o mesmo desempenhe ou já tenha desempenhado funções, entrar em conflito com as regras deontológicas consagradas no EOA (cf. art. 83.º, n.º 2, do EOA).

 

Preceitua o art. 99.º, n.º 1, do EOA, em sede de conflito de interesses, no que aqui interessa, que “[o] advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária”.

 

A este propósito cumpre notar que as situações de conflitos de interesses “não se refere[m] a incompatibilidades ou a impedimentos relativos, mas ao dever do Advogado de se abster de praticar atos próprios da profissão em casos concretos de conflitos de interesses ou quando neles interveio noutra qualidade diferente da de Advogado constituído[7].

 


IV A
NÁLISE DO PARECER DO CONSELHO GERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS N.º14/PP/2018-G

 


O EPD e a Independência no Exercício da Advocacia

 

O Conselho Geral da Ordem dos Advogados entendeu que “as incompatibilidades estatutariamente previstas, no artigo 82º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, são-no a título meramente exemplificativo, pelo que a mera falta de menção das funções do DPO não é suficiente, para, por si só, afastar a possibilidade da incompatibilidade. (…)

 

[T]endo em consideração o tipo e natureza de funções do DPO, e essencialmente a circunstância de tais funções serem prestadas a um ou mais clientes concretos, será seguro afirmar-se que o exercício de tal atividade não é incompatível com a advocacia.

 

No entanto, não parece menos clara a existência de um impedimento que diminui a amplitude do exercício da advocacia e constitui incompatibilidade relativa (…) tendo em vista uma relação com um cliente para quem se exerça, ou tenha exercido, as funções de DPO.

 

(…) o advogado deve considerar-se impedido de praticar atos profissionais para clientes onde desempenhe ou tenha desempenhado funções, como as próprias do DPO, cujo exercício pode suscitar, em concreto, uma incompatibilidade, se aqueles atos entrarem em conflito, como é seguro, com as regras deontológicas que regulam o exercício da atividade da advocacia.[8](sublinhados nossos).

 

Contudo, o Conselho Geral da Ordem dos Advogados não especifica quais são, em concreto, as regras deontológicas com as quais os atos profissionais em causa entram em conflito, nem as circunstâncias em que esse conflito pode ocorrer, referindo unicamente a existência, em abstrato, do impedimento, desde que o advogado seja ou tenha sido EPD do cliente.

 

Entendeu, ainda, o Conselho Geral que “[a] advocacia deve ser exercida de forma isenta e independente. Isso não significa que o advogado deva ser imparcial (isso deve ser o juiz). O advogado diria que, por definição, é parcial. Sendo assim, parece evidente que relativamente a um determinado cliente, tendo a obrigação de, como DPO, o fiscalizar – com tudo o que isso implica regulamentarmente - deontologicamente não tem condições para lhe prestar a sua atividade como advogado[9]. (sublinhados nossos)

 

Ora, efetivamente, decorre do princípio da independência que o advogado “mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros” (cf. art. 89.º, do EOA).

 

Salvo o devido respeito, não se vislumbra como poderá o mero exercício das funções  de  DPO  comprometer,  seguramente  e  de  forma  automática,  a independência do advogado, contrariamente ao afirmado pelo Conselho Geral. Na realidade, tal como o advogado, também o EPD deve “estar em condições de desempenhar    as    suas    funções    e    atribuições    com    independência” (cf. considerando § 97, do RGPD), não recebendo “instruções relativamente ao exercício das suas funções” (cf. art. 38.º, n.º 3, do RGPD).

 

Do exposto resulta que, regra geral, as garantias de independência do advogado não são diminuídas nos casos em que o mesmo exerce as funções de EPD, uma vez que no exercício de tais funções o advogado não se encontra subordinado a eventuais instruções da entidade para a qual exerce essas funções.

 

Do mesmo modo e salvo melhor opinião, nada na natureza do EPD ou no elenco das funções de EPD implica inevitavelmente a existência de um conflito de interesses. A função do EPD é, na sua essência, uma função de informação e aconselhamento, bem como de controlo e promoção da conformidade de uma determinada atividade com as normas sobre a proteção de dados pessoais, que, aliás, exige conhecimentos jurídicos em matéria de proteção de dados pessoais.

 

Assim, o mero facto de o advogado exercer ou ter exercido funções de EPD para uma determinada entidade não diminui de forma automática a autonomia e a independência com que o mesmo exerce a sua profissão de advogado junto dessa entidade.

 

 
O EPD e a defesa dos interesses do cliente no exercício da advocacia


 

O art. 97.º, n.º 2, do EOA, estabelece que “[o] advogado tem o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas”, sendo que esse dever não é automaticamente posto em causa quando o advogado exerce ou exerceu funções de EPD para esse cliente.

A única circunstância em que o advogado pode ter de recusar o patrocínio de um cliente para o qual exerça ou já tenha exercido as funções de EPD sucede quando tal patrocínio incida sobre uma questão em que o advogado tenha intervindo na qualidade de EPD, por se encontrar numa potencial situação de conflito de interesses (cf. art. 99.º, n.º 1, do EOA).

 

Ou seja, poderá existir uma situação de conflito de interesses – sublinha-se, poderá – na medida em que o advogado chamado a aconselhar o cliente ou a patrociná-lo sobre questões em que tenha intervindo como EPD poderá, conscientemente ou inconscientemente, limitar a sua atuação em função dos seus próprios interesses. O advogado deve sempre atuar na melhor defesa dos interesses do cliente e se o cliente lhe pede aconselhamento em matérias em que tenha tido intervenção como EPD, o advogado poderá ser tentado a dar prevalência aos seus interesses em detrimento da melhor defesa dos interesses do cliente, mas essa eventualidade terá de ser avaliada, em concreto, pelo próprio advogado.

 

Aliás, parece-me que haverá maior suscetibilidade de se colocar numa situação de conflito de interesses o advogado que aceita o patrocínio do cliente para processos que visem temas diretamente relacionados com a atuação que tenha tido enquanto EPD ou sobre temas em que enquanto EPD tenha assumido posição expressa perante o seu cliente.

 

Mais uma vez, embora nos pareça que a potencialidade da existência de conflito de interesses seja mais premente nestas situações, tal não invalida a necessidade de uma avaliação criteriosa e casuística realizada pelo próprio advogado.

 

Sobre a limitação dos conflitos de interesses a estas situações, escreve-se no parecer do Conselho Geral “(…) poder-se-ia defender que o impedimento só deveria existir se o mandato forense ou a consulta jurídica respeitassem a assunto que tivesse, de algum modo, a ver com a atividade do DPO. Sou de opinião de que não se deve fazer tal distinção que seria especiosa. O que o advogado conhece no âmbito das funções de DPO sempre poderia, deontologicamente, inquinar a sua atuação quer no exercício do mandato forense, quer na consulta jurídica (…)” [10]. (sublinhados nossos)

 

Com o devido respeito, entendemos que tal conclusão não merece acolhimento.

 

Por um lado, a distinção será relativamente simples de realizar: o advogado não deverá aconselhar o cliente ou assumir o patrocínio relativamente à sua atuação como Encarregado de Proteção de Dados ou relativamente a assuntos em que, nessa qualidade, tenha assumido posição expressa que possa gerar um conflito de interesses.

Por outro lado, não se vê como aquilo que o advogado conheça sobre a realidade do cliente como EPD possa inquinar a sua atuação enquanto advogado. Pelo contrário, quando muito o conhecimento aprofundado da organização do cliente que um EPD deve possuir [11] poderá permitir ao advogado melhor aconselhar ou representar o seu cliente.

 

Face ao exposto, não podemos concordar com o Parecer do Conselho Geral e, sobretudo, não vislumbramos no mesmo argumentos para que se proclame uma solução que nos parece excessiva, ao impedir até o exercício do mandato relativamente a clientes nos quais o advogado tenha, no passado, exercido a função de EPD.

 

O Parecer do Conselho Geral é até mais restritivo do que a opinião do Conselho das Ordens de Advogados da Europa (“Council of Bars and Law Societies of Europe” ou “CCBE”): “[a] lawyer acting in the capacity of a DPO will require to ensure independence, and to avoid conflicts of interest, especially those conflicts which may arise from being simultaneously the contact person for the data protection authority (a role which involves obligations to report to the authority even if it is against the interest of the controller or processor) whilst also having a requirement to represent the clients' interests to the full extent permitted by law. In view of this potential conflict of interest, Bars and Law Societies may wish to recommend lawyers to assume such a responsibility of a DPO for an external client only if they have neither acted as a lawyer in matters which might fall within the DPO’s responsibility nor will act, during their term as DPO, as a lawyer in matters they were or are involved in as DPO[12]. (sublinhado nosso)

 

Aliás e salvo o devido respeito, uma solução tão drástica como aquela que parece ter sido adotada pelo Parecer em análise impediria o advogado de avaliar a sua própria conduta e o exercício deontológico da profissão, o que constitui um pressuposto essencial do livre exercício da profissão.

 

Note-se bem que, antes de mais, é ao advogado que cabe avaliar se se encontra numa situação de conflito de interesses potencial ou efetiva.

 

Como se refere em parecer do então Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, “[p]ara o advogado a matéria de conflito de interesses é uma questão de consciência, competindo-lhe ajuizar se a relação de confiança que estabeleceu com um seu antigo cliente lhe permite, livremente e sem constrangimentos, assumir um patrocínio contra ele.

 

Não está vedado ao advogado, genericamente, exercer patrocínio contra anterior cliente, impondo-se apenas averiguar se tal patrocínio configurará, ou não, uma situação de conflito de interesses.[13] (sublinhados nossos)

 

E é, por isso, ao advogado que possa atuar ou ter atuado como EPD que caberá avaliar se se encontra ou se poderá vir a estar numa situação de conflito de interesses, caso venha a ser chamado a aconselhar ou patrocinar o cliente como advogado.

Daí que a solução do Conselho Geral ao apontar para a existência de uma incompatibilidade relativa entre o exercício da advocacia e o exercício, presente ou passado, das funções de EPD nos pareça, além de insuficientemente fundamentada à luz do Estatuto da Ordem dos Advogados, injustificada e violadora do princípio da proporcionalidade (cf. art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa).

 

Com efeito, a proibição do exercício da advocacia relativamente a clientes nos quais o advogado tenha exercido a função de EPD assume-se como uma restrição significativa ao livre exercício da profissão do advogado e à livre escolha do advogado por parte dos seus clientes (cf. artigos 67.º, n.º 2, e 69.º, do EOA).

 

Se é certo que a solução do Conselho Geral é idónea para acautelar o exercício deontológico da profissão, procurando evitar de forma absoluta e automática a existência de conflitos de interesses emergentes do exercício concomitante ou passado pelo advogado da função de EPD, não é menos certo que a proibição imposta pelo Conselho Geral viola de forma evidente o princípio da proporcionalidade, nas suas máximas de necessidade e de proporcionalidade em sentido estrito.

 

Na avaliação da necessidade de uma medida, “[o] centro das preocupações desloca-se para a ideia de comparação[14], sendo certo que o objetivo dessa comparação será a opção pela medida menos lesiva dos direitos e interesses que possam ser afetados.

Portanto, a questão seria a de saber se declarar a existência de uma incompatibilidade relativa entre o exercício da advocacia e o exercício concomitante ou passado das funções de EPD era uma medida necessária. E a resposta só pode ser negativa, na medida em que, como vimos, o próprio EOA contém outras normas que permitem salvaguardar os conflitos de interesses e, também porque, como veremos, existiam outras opções disponíveis menos restritivas dos direitos e interesses dos advogados e dos seus clientes.

 

Saliente-se que para que uma medida seja proporcional terá ainda de ser não excessiva ou proporcional em sentido estrito. No fundo, esta máxima da proporcionalidade exige a averiguação da tolerância do excesso ou da possibilidade de sacrifício de certos interesses. Trata-se, neste caso, de uma análise (axiológica) do custo (interesses sacrificados) / benefício (interesses realizados ou salvaguardados).

 

Sobre este ponto é revelador considerar que, ao abrigo do EOA, como vimos anteriormente, o advogado pode assumir o patrocínio contra clientes que tenha patrocinado no passado desde que assegure a inexistência de um conflito de interesses e o respeito pelo sigilo profissional (cf. art. 99.º, do EOA), mas, segundo o Parecer em crise, o advogado que tivesse sido EPD no passado jamais poderia aconselhar ou patrocinar esse cliente.

 

No nosso entendimento, são possíveis outras soluções mais condizentes com os princípios que enquadram o exercício e a tradição da advocacia em Portugal e que assegurem os mesmos objetivos com um carácter menos restritivo dos direitos e liberdades fundamentais dos advogados e até dos próprios cidadãos e empresas. Uma solução adequada e proporcional passaria, nomeadamente, por concretizar princípios deontológicos e por estabelecer uma incompatibilidade relativa de carácter restrito, seguindo o exemplo Belga [15].

 

Nestes termos, deveria ser adotada solução que:

 i. Esclareça que os Advogados com inscrição em vigor que exerçam as funções de Encarregado de Proteção de Dados permanecem vinculados ao cumprimento das normas estabelecidas no EOA e, também, sujeitos ao poder disciplinar da Ordem dos Advogados;

ii. Reitere que o Advogado que exerça funções de Encarregado de Proteção de Dados deve demitir-se dessas funções assim que constate a existência de um conflito de interesses;

iii. Estabeleça que o Advogado deve abster-se de patrocinar clientes para os quais exerça ou tenha exercido as funções de Encarregado de Proteção de Dados sempre que nos respetivos processos esteja em causa a sua atuação enquanto Encarregado de Proteção de Dados ou em que seja discutida qualquer questão sobre a qual tenha tomado posição expressa enquanto Encarregado de Proteção de Dados, que possa resultar num conflito de interesses;

iv. Estabeleça que nas demais situações que, em concreto, possam conflituar ou suscitar dúvidas quanto à sua conformidade com as normas deontológicos, tal pressupõe, sempre e em qualquer circunstância, uma análise casuística, à semelhança de todas aquelas funções e atividades que hodiernamente são exercidas pelo Advogado, e que não se reconduzindo a uma situação de incompatibilidade absoluta, possam, em concreto e casuisticamente, gerar impedimentos ao exercício da advocacia.

 

Com todo o respeito, uma tal solução permitiria à Ordem dos Advogados pugnar pelo exercício deontológico da profissão, alertar para os potenciais riscos da existência de conflitos de interesses e estabelecer os casos de evidentes conflitos de interesses. Ao mesmo tempo, parece-nos, uma tal solução constituiria uma solução proporcional, respeitadora das liberdades e das legitimas expetativas dos advogados e dos seus clientes.

 


Proposta


 

Os Advogados podem exercer a advocacia e, assim, exercer o mandato forense e a consulta jurídica para entidades para quem exerçam, ou, tenham exercido, as funções de Encarregado de Proteção de Dados.

Os Advogados devem, no entanto, abster-se de exercer o mandato por conta de clientes para os quais exerçam ou tenham exercido as funções de Encarregado de Proteção de Dados, em caso de atual ou potencial conflito de interesses entre o exercício daquelas funções e os interesses do cliente.

 

A verificação da existência de impedimento relativo deve ser aferida caso a caso, pelo próprio Advogado, sendo que, ao mesmo, em caso de dúvida, compete nos termos do nº 6 do artigo 83º do EOA solicitar parecer sobre a questão profissional ao Conselho Regional territorialmente competente, o qual será emitido ao abrigo do disposto na alínea f) do nº1 do artigo 54º do EOA.

Este é o nosso parecer.


João Massano
Vice-Presidente do CRL


 

[1] Designado pelo “Responsável” pelo tratamento ou “Subcontratante”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 37.º, n.º 1, do RGPD.

[2] Cf. artigo 37.º, n.º 1, do RGPD.

[3] Cf. orientações sobre os encarregados da proteção de dados (EPD), do Grupo de Trabalho do Artigo 29.º, adotadas em 13 de dezembro de 2016, com a última redação revista e adotada em 5 de abril de 2017, p. 5.

[4] O Grupo de Trabalho do Artigo 29.º é o grupo de trabalho europeu independente que lidou com as questões relacionadas com a proteção de dados pessoais e da privacidade até 25 de maio de 2018 (data de aplicação do RGPD) e foi substituído pelo Comité Europeu para a Proteção de Dados no dia 25 de maio de 2018, com o início da aplicação do Regulamento.

[5] Orientações sobre os encarregados da proteção de dados (EPD), do Grupo de Trabalho do Artigo 29.º para a Proteção de Dados, adotadas em 13 de dezembro de 2016, com a última redação revista e adotada em 5 de abril de 2017, p. 19.

[6] Aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro.

[7] ORLANDO GUEDES DA COSTA, Direito Profissional do Advogado, 2015, 8ª edição, Almedina, pp. 217-218.

[8] Parecer n.º 14/PP/2018-G do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, pp. 2 e 3.

[9] Parecer n.º 14/PP/2018-G do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, p. 3.

[10] Parecer n.º 14/PP/2018-G do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, p. 3, nota de rodapé 2.

[11] Orientações sobre os encarregados da proteção de dados (EPD), do Grupo de Trabalho do Artigo 29.º para a Proteção de Dados, adotadas em 13 de Dezembro de 2016, com a última redação revista e adotada em 5 de Abril de 2017, p. 14.

[12] Council of Bars and Law Societies of Europe, “Guidance on the main new compliance measures for lawyers regarding the General Data Protection Regulation (GDPR)”, 2017, p. 4.

[13] Acessível em https://www.oa.pt/upl/%7B74b4fca0-5608-4a84-a3e4-1a2fae950dd1%7D.pdf

[14] VITALINO CANAS, Proporcionalidade (Princípio da), in Dicionário Jurídico da Administração Pública, Vol. VI., Lisboa, 1994, p. 624, seguindo-se de perto os ensinamentos do autor nesta mesma obra (cf., em particular, pp. 591-649)

[15] A título de exemplo, veja-se as soluções adotadas nos artigos 2.100.a e ss. do Texte coordonné du Code de déontologie1 des avocats et du Règlement déontologique bruxellois, disponível em: http://www.barreaudebruxelles.info/images/publications/recueil_codeon_rdb.pdf, onde se refere que o advogado pode desempenhar as funções de EPD, desde que notifique primeiro o bastonário, estabelecendo-se, no que aqui interesse, que o advogado só não pode: (i) representar, perante os tribunais e outros órgãos judiciais, no quadro de procedimentos administrativos ou judiciais, toda a pessoa ou organismo para o qual exerça as funções de EPD, sempre que estejam em causa questões relacionadas com a proteção de dados pessoais; (ii) representar ou intervir a favor de uma parte que é ou se torna contrária relativamente àquela para a qual presta serviços de encarregado de proteção de dados; (iii) intervir a favor ou contra o responsável pelo tratamento sempre que exista um conflito de interesses ou uma suspeita de violação do sigilo profissional.

João Massano

Topo