Pareceres do CRLisboa

Consulta 5/2020

Questão

 

Mediante requerimento rececionado nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa em 28 de janeiro de 2020 (entrada com o número de registo), a Exma. Senhora Advogada Dra., titular da cédula profissional n.º, veio solicitar a emissão de parecer, com o enquadramento factual que abaixo será circunstanciado, e cujo objeto se reconduz à eventual existência de conflito de interesses no exercício do patrocínio forense.

 

Os factos descritos pela Senhora Advogada Consulente, e com relevância para o objeto deste parecer, são os seguintes:

a.     No quadro legal do Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais, a Senhora Advogada Consulente foi nomeada, em de novembro de 2017, patrona de, no âmbito do processo n.º, cujos termos correram no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal de – Juiz.

b.     No âmbito do processo anteriormente identificado, veio a ser condenado em pena de prisão efetiva pela prática de um crime de violência doméstica contra menor.

c.      O menor é, filho de com quem era casado.

d.     Sucede que, em de outubro de 2019, a Senhora Advogada Consulente foi nomeada para representar o menor no processo de promoção e proteção a correr os seus termos junto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Família e Menores de – Juiz, sob n.º.

e.     Nos autos de promoção e proteção, apenas a mãe do menor intervém processualmente.

 

Neste contexto, pretende a Senhora Advogada Consulente ver esclarecida a questão de saber se existe conflito de interesses na representação do menor, quando no âmbito do processo-crime n.º, já havia patrocinado, padrasto do menor.

 

Opinião

 

O objeto da consulta solicitada subsume-se à matéria relativa a conflitos de interesses prevista no artigo 99.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro (doravante apenas EOA). 

 

O artigo 99.º do EOA, sob a epígrafe “Conflito de Interesses”, determina nos seus números 1 a 6, o seguinte:

“1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado. 

3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes. 

4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito. 

5 - O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

6 - Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”

 

Vejamos então.

 

Adiante-se, desde já, que somos de parecer que, a Senhora Advogada Consulente se encontra manifestamente impedida de continuar a representar o menor no processo de promoção e proteção.

 

De facto, é nosso entendimento que a situação fáctica relatada cai diretamente na fattispecie do n.º 1 do artigo 99.º, que preceitua, nomeadamente, que o Advogado deve recusar o patrocínio de uma questão que seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.

 

Vejamos porquê.

 

Por força do conflito de interesses, é absolutamente pacífico que o Advogado que patrocinou uma questão (processo judicial ou não) não poderá, finda esta, intervir noutro pleito em íntima conexão com aquela outra e no qual defende, em abstrato, interesses opostos ao do seu anterior cliente/patrocinado.

 

A ratio do disposto no artigo 99.º, n.º 1 do EOA é evitar a violação dos deveres de isenção, independência e, fundamentalmente, do dever de sigilo profissional. Sendo que, nas situações aí contempladas, o legislador entendeu existir um impedimento objetivo para o exercício do mandato por forma a não perigarem aqueles mesmos deveres.

 

No caso concreto, a Senhora Advogada Consulente foi nomeada defensora do padrasto do menor no âmbito de um processo-crime em que, a final, o mesmo viria a ser condenado em pena de prisão efetiva pela prática de um crime de violência doméstica praticado contra o menor.

 

É evidente que o padrasto do menor, atenta a qualidade de padrasto, carece de legitimidade para intervir no processo de promoção e proteção, não sendo, portanto, parte neste processo.

 

Mas se assim é, também não podemos olvidar que a expressão “parte contrária” a que se refere o artigo 99.º, n.º 1 do EOA não se resume ao conceito processual.

 

Entendemos que a expressão “parte contrária” deve ser interpretada na perspetiva deontológica de aferição de conflitos de interesses. O que equivale a dizer que o invocado aspeto processual – portanto, o simples facto de, no processo de promoção e proteção, o padrasto do menor não ser parte (legítima) -, não é, de per si, suficiente para afastar a aplicação do disposto no artigo 99.º, n.º 1 do EOA.

 

No presente caso e na perspetiva deontológica de aferição de conflitos de interesses, a Senhora Advogada Consulente encontra-se a patrocinar uma questão conexa com outra em que representou “a parte contrária”, no caso, o padrasto.

 

É que, não há dúvidas, os processos judiciais - portanto, o processo-crime e o processo de promoção e proteção -, são materialmente conexos. Estão-lhes subjacentes os mesmos comportamentos, comportamentos estes que, no plano do direito, assumem relevância penal e relevância no plano da promoção dos direitos e da proteção das crianças e dos jovens em perigo.

 

Portanto, o que temos neste caso é que, em relação ao mesmo assunto, melhor dizendo em relação aos mesmos comportamentos, a Senhora Advogada Consulente já interveio na qualidade de Advogada do padrasto do menor e agora assume a qualidade de Advogada do menor. O que, manifestamente, as regras atinentes ao conflito de interesses não permitem.

 

Em suma, somos de parecer que a Senhora Advogada Consulente deverá apresentar, por evidente conflito de interesses, o competente pedido de escusa do patrocínio para o qual foi nomeada, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 34.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho.

 

Lisboa, 16 de março de 2020.

 

A Assessora Jurídica do CRL

Sandra Barroso

Sandra Barroso

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