Pareceres do CRLisboa

Consulta 37/2018

Questão

 

Veio o Meritíssimo Juiz titular do processo n.º, a correr os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Cível de – Juiz, em que é Autora a sociedade comercial denominada, e são Réus e, solicitar a emissão de parecer, com o enquadramento factual que abaixo será circunstanciado, e cujo objeto de reconduz à questão de saber se determinadas comunicações eletrónicas (que mais à frente identificaremos) estão, em primeira linha, abrangidas pelo dever de confidencialidade plasmado no artigo 113.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro.

 

O enquadramento factual da questão que ora nos ocupa é o seguinte:

  1. No âmbito do processo n.º, foi apresentada Réplica em 20 de junho de 2018, à qual a Autora juntou um documento (doc. 1).
  2. O documento em causa é composto por 5 (cinco) comunicações eletrónicas trocadas entre os Exmos. Senhores Dr. e Dra., Ilustres Advogados, mandatários, respetivamente, dos ora Autora e Réus.
  3. Apresentada a Réplica, a mandatária dos Réus invocou a inadmissibilidade como meio de prova documental do documento junto à Réplica, por entender estarem em causa “e-mails trocados entre mandatários, nomeadamente, entre a mandatária dos Réus”, estribando-se no disposto no artigo 113.º do EOA.
  4. De facto, sustenta a mandatária dos Réus que os seus emails contêm a seguinte menção: “Esta mensagem é confidencial e dirigida apenas ao destinatário. Se a recebeu por erro solicitamos que o comunique ao remetente e a elimine assim como qualquer documento anexo. Não há renúncia à confidencialidade nem a nenhum privilégio devido a erro de transmissão”.
  5. A final, conclui a mandatária dos Réus que “Assim e, face ao disposto no artigo 113.º n.º 2 do EOA, os e-mails juntos aos presentes autos pela Autora não podem constituir meio de prova”.
  6. Por sua vez, e na sequência da resposta dos Réus, o mandatário da Autora sustenta, por um lado, que os mandatários “intervêm na qualidade de representantes/procuradores das partes, e não na qualidade de advogados” e, por outro, que as comunicações por si subscritas e dirigidas à mandatária dos Réus não contêm qualquer nota de confidencialidade pelo que constituem meio de prova válido.   

 

É, portanto, neste contexto que o Tribunal vem solicitar a pronúncia do Conselho Regional de Lisboa.

 

Entendimento do Conselho Regional de Lisboa

 

Estipula o artigo 92.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro (doravante apenas EOA), que o Advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.

 

 

 

 

O conceito de “factos” para efeitos do sigilo profissional é um conceito amplo e compreende não só os factos materiais suscetíveis de alegação, como os próprios documentos onde esses mesmos factos materiais estão contidos, como decorre do disposto no artigo 92.º, n.º 3 do EOA. O que facilmente se alcança se tivermos em conta que o sigilo profissional se reporta a factos e protege factos.

 

O princípio geral é o de que os Advogados estão obrigados a guardar segredo profissional em relação a assuntos profissionais versados em correspondência trocada com Colegas. Isto é, toda a correspondência que respeite ao exercício da profissão está, em regra, abrangida pela esfera de proteção do sigilo profissional. Tal decorre de forma inequívoca do disposto nos artigos 92.º e 76.º do EOA. 

 

Por sua vez, o artigo 113.º do EOA consagra a confidencialidade da correspondência trocada entre Advogados e entre estes e Solicitadores, o qual, por facilidade de exposição, passamos a transcrever:

“1- Sempre que um advogado pretenda que a sua comunicação, dirigida a outro advogado ou solicitador, tenha caráter confidencial, deve exprimir, claramente, tal intenção.

2 – As comunicações confidenciais não podem, em qualquer caso, constituir meio de prova, não lhes sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 92º.

3 – O advogado ou solicitador destinatário da comunicação confidencial que não tenha condições para garantir a confidencialidade da mesma deve devolvê-la ao remetente sem revelar a terceiros o respetivo conteúdo”.

 

Portanto, a diferença de regime entre a correspondência classificada ou não como confidencial reside apenas no seguinte.

 

A que for classificada como confidencial (ao abrigo do já invocado art.º 113.º do EOA), ao invés da que não for classificada como confidencial, não poderá nunca ser revelada, não podendo, em qualquer circunstância, ser objeto do pedido de autorização previsto no art.º 92.º, n.º 4 do EOA. Tal decorre direta e expressamente do estatuído no n.º 2 do artigo 113.º do EOA.

 

Por outro lado, o dever de confidencialidade estatuído vincula quer o emissor quer o recetor da comunicação sujeita a esse mesmo dever. Tal decorre diretamente do n.º 3 da referida norma legal.

 

Uma vez expressa a intenção de conferir a determinada correspondência caráter confidencial, a mesma fica sujeita ao regime legal do artigo 113.º do EOA. Não está no livre arbítrio do seu emissor/recetor prescindir da confidencialidade quando a correspondência, porventura, pudesse ser útil à preservação dos valores prevalecentes previstos no artigo 92.º, n.º 4 do EOA, mas não prescindindo dela quando a correspondência já não fosse útil à preservação desses mesmos valores. Não foi essa, como já dissemos, a intenção do legislador.

 

Feito o enquadramento legal, vejamos agora o caso concreto.

 

O doc. 1 junto pela Autora com a Réplica é constituído por 5 (cinco) emails, trocados entre os mandatários das partes entre 3 de março e 12 de abril de 2017.

 

Os dois emails que a mandatária dos Réus dirigiu ao mandatário da Autora, datados de 3 de março de 2017 (16:17) e de 12 de abril de 2017 (12:47), contêm a seguinte menção:

 

 

 

“Esta mensagem é confidencial e dirigida apenas ao destinatário. Se a recebeu por erro solicitamos que o comunique ao remetente e a elimine assim como qualquer documento anexo. Não há renúncia à confidencialidade nem a nenhum privilégio devido a erro de transmissão”.

 

Importa, antes de mais, verificar se a menção transcrita releva nos termos e para efeitos do dever de confidencialidade ínsito no normativo legal contido no artigo 113.º do EOA, conforme sustenta nos autos a mandatária dos Réus.

 

Convirá realçar que o dever de confidencialidade foi introduzido pelo Estatuto Profissional de 2005 (aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de janeiro). Sob a identificada previsão, visou o legislador criar uma cláusula de salvaguarda quanto a certas comunicações entre mandatários, que nunca poderão constituir meio de prova documental.

 

Mas, para que determinada correspondência fique sujeita ao regime da confidencialidade estatuído no artigo 113.º do EOA, é necessário que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:

a.     Têm que estar em causa comunicações trocadas exclusivamente entre Advogados;

b.     Tem que haver referência expressa e clara à confidencialidade nos termos e para efeito do normativo legal em causa;

c.      Os factos devem ser efetivamente sigilosos nos termos e para efeito do disposto no artigo 92.º, n.º 1 do EOA.  

 

Quanto ao requisito enunciado em b) supra, facilmente concluímos que o art.º 113.º do EOA não pretendeu abranger as mensagens de confidencialidade genéricas que usualmente são utilizadas em “modelos” ou “templates” de emails. A menção do carácter confidencial daquilo que é transmitido tem que ser expresso e inequívoco, o que não acontece com qualquer dos emails enviados pela mandatária dos Réus.

 

O texto compreendido no corpo das já mencionadas mensagens refere, de facto, a confidencialidade das mesmas por reporte a terceiro que possa, eventualmente, aceder ao seu teor. Mas isto é manifestamente insuficiente para cumprir o requisito exigido que se traduz na necessidade de ser, de forma clara e inequívoca, atribuído carácter de absoluta e total confidencialidade às comunicações trocadas entre Advogados.

 

Tendo concluído pela não aplicação do regime estabelecido no art.º 113.º do EOA, haverá agora que orientar a nossa análise para outro plano legal: a do sigilo profissional, ou seja, saber se o doc. 1 está abrangido pelo dever de sigilo consagrado no art.º 92.º do EOA.

 

Vejamos então.

 

Entre os ora Autora e Réus foi celebrado, em 9 de fevereiro de 2017, um contrato-promessa de compra e venda, nos termos do qual a Autora prometeu vender e o Réu marido prometeu comprar o imóvel de que a Autora é proprietária e melhor descrito no artigo 1.º da petição inicial. A escritura pública de compra e venda do imóvel foi outorgada em 31 de março de 2017.

 

 

 

O litígio atualmente em curso tem como causa de pedir a cláusula 11ª do mencionado contrato-promessa de compra e venda, a qual, por facilidade de raciocínio, passamos a transcrever: “Se, depois de adquirido o Imóvel, O PROMITENTE COMPRADOR executar obras de remodelação, alteração ou de conservação do mesmo, compromete-se a contratar à PROMITENTE VENDEDORA ou à empresa do Grupo que esta indicar, o respectivo Projecto de Arquitectura, Engenharia de Estruturas e Especialidades, pelo preço global de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), a que acresce o IVA, nos termos e demais condições da Proposta da Promitente Vendedora anexa a este contrato”.

 

Sustentando a sua posição na mencionada cláusula, peticiona a Autora o pagamento da quantia de € 15.375,00 (IVA incluído), acrescida de juros de mora comerciais, correspondente ao primeiro pagamento de 25% do preço acordado e devido pela adjudicação dos serviços.

 

Os Réus defendem-se nomeadamente por exceção, invocando a alteração das circunstâncias ao abrigo do disposto no artigo 437.º do Código Civil. Concretamente, invocam os Réus uma alteração da sua vontade de permitir à Autora o uso gratuito do imóvel a esta adquirido por um prazo de 3 (três) meses subsequente ao da compra, na medida em que, em finais de junho de 2017, tomaram conhecimento que a Autora, sem o seu (alegado) conhecimento e autorização, tinha arrendado o imóvel durante esse período a terceiros, a saber a sociedade comercial com a firma.

 

Em sede de Réplica, e quanto a este ponto, sustenta a Autora que tal não corresponde à verdade, uma vez que os Réus tiveram conhecimento de tal circunstância ainda durante o período negocial e antes da data indicada. E foi, precisamente, para prova desta factualidade que a Autora juntou o doc. 1., objeto do presente pedido de parecer.

 

Entendemos que a dúvida suscitada nos autos quanto à sujeição, ou não, ao dever de sigilo das comunicações eletrónicas que constituem o doc. 1 da réplica é legítima por duas razões, ambas relacionadas com a literalidade do artigo 92.º do EOA.

 

A primeira, porque da interpretação literal do corpo do art.º 92.º, n.º 1 do EOA se poderia concluir, em absurdo, que todo e qualquer facto transmitido ao Advogado no exercício da sua profissão ou por ele conhecido por força desse mesmo exercício estaria sempre sujeito ao regime do segredo profissional. A segunda, porque ainda pela interpretação literal das diversas alíneas do n.º 1 se poderia concluir que a caraterização do facto sigiloso adviria do meio pelo qual esse facto teria chegado ao conhecimento do Advogado, não relevando para tal o conteúdo e a natureza sigilosa do próprio facto. O que, em tese, poderia levar-nos igualmente a conclusões absurdas.

 

Mas compreende-se também porque é que o artigo 92.º do EOA – sabendo-se à partida que a sua letra poderá conduzir a conclusões absurdas – se encontra redigido desta forma. É sabido que o segredo profissional é a trave mestra da Advocacia. E a forma como se encontra redigido o normativo legal contido no art.º 92.º do EOA permite-nos, não nos atendo apenas e tão-só à sua letra, interpretar e reconstruir aquele que foi o espírito do legislador quanto aos factos que pretende ver protegidos pelo segredo profissional. O advérbio “designadamente” contido no art.º 92.º, n.º 1, permite-nos inelutavelmente chegar a essa conclusão, pois que indica que os factos sujeitos a segredo profissional não se esgotam naqueles que se encontram elencados nas suas diversas alíneas.

 

Portanto, a fronteira entre aquilo que está, ou não, abrangido pela esfera de proteção do dever de sigilo apenas se fará (e diga-se, dever-se-á fazer) por análise casuística. Apenas pela análise do caso concreto se poderá aferir da sujeição de um facto – ainda que vertido em documento -, a sigilo profissional.

 

E para nos coadjuvar nesta análise, teremos que concatenar, como sempre temos defendido, (i) a forma como o conhecimento do facto – ainda que vertido em documento -, chegou ao Advogado, quem o revelou e em que quadro fáctico; (ii) o teor do próprio facto – ainda que vertido em documento -, que ajuda a perceber se tem ou não a natureza de segredo, pois nem tudo o que é revelado ao Advogado é, em si, um segredo; e (iii) as próprias circunstâncias do conhecimento e da revelação.

 

A análise feita através deste triplo crivo, ajuda a discernir o que é e o que não é segredo.

 

No caso vertente, é para nós assaz evidente que a intervenção que os Senhores Advogados tiveram no assunto em discussão nos autos o foi sempre na qualidade de Advogados, mesmo aquando da troca das comunicações eletrónicas objeto do pedido de parecer, ao contrário do que é defendido nos autos pelo mandatário da Autora.

 

De facto, as comunicações em causa materializam os atos de execução do acordo firmado entre as partes e atinentes ao uso gratuito do imóvel por parte da Autora nos três meses subsequentes à data da outorga do contrato definitivo.

 

Ora, consabidamente, o segredo profissional tem por objetivo reservar todos os factos atinentes a um determinado assunto, e não apenas parte de tais factos. Tal significa que, em relação ao assunto em discussão nos autos, não se pode considerar que os mandatários intervieram, em relação a parte dos factos atinentes a esse mesmo assunto como Advogados e, em relação aos demais factos atinentes a esse mesmo assunto como mero procuradores. Tal interpretação não é admissível à luz daquele que é, como já vimos, o escopo do dever de sigilo.

 

Neste conspecto, forçoso é concluir que as comunicações que constituem o doc. 1 da réplica dizem respeito a assuntos profissionais conhecidos no exercício da profissão e por causa desse mesmo exercício. Pelo que, existindo uma relação de causalidade necessária entre o exercício dessas funções e o conhecimento desses mesmos factos, dúvidas não subsistem de que essas comunicações estão abrangidas pelo dever de sigilo por força da cláusula geral contida no artigo 92.º, n.º 1 do EOA, em articulação com o disposto no n.º 3 da mesma norma legal.

 

Ora, nos termos do disposto no já invocado artigo 92.º, n.º 4, do EOA, a revelação de factos protegidos pelo sigilo profissional – ainda que versados em documento -, só pode ter lugar se previamente autorizada pelo Presidente do Conselho Regional sob pena de não constituírem meio de prova válido dos factos assim revelados, o que decorre do n.º 5 da mesma norma legal.

 

Contudo, e sem prejuízo deste nosso entendimento, certo é que, nos termos da lei (cf. artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa e artigo 2.º n.º 2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário) é aos Tribunais que pertence a função jurisdicional e, por conseguinte, a capacidade de julgar em definitivo se uma prova é ou não válida.

 

Lisboa, 29 de abril de 2020.

 

A Assessora Jurídica do CRL

Sandra Barroso

 

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

 

Notifique-se o Tribunal e os Exmos. Senhores Dr. e Dra., Ilustres Advogados.

 

Lisboa, 29 de abril de 2020.

 

O Presidente do Conselho Regional de Lisboa

João Massano

Sandra Barroso

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