Pareceres do CRLisboa

Consulta 52/2019

Questão

 

Mediante requerimento que deu entrada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados no passado dia 19 de novembro 2019, com o n.º, veio a Exma. Senhora Advogada Dra., titular da cédula profissional n.º L, solicitar a emissão de Parecer sobre a seguinte questão:

a)     A Senhora Advogada Consulente refere que, em meados de julho de 2019, recebeu no seu escritório, o qual solicitou que o representasse na ação de alteração das responsabilidades parentais que a progenitora da filha moveu contra ele, tendo, em sequência, aceitado o patrocínio e juntado procuração nos respetivos autos.

Sucede que,

b)     No início de novembro de 2019, a progenitora da menor, de nome, terá contactado a UMAR, entidade onde a Senhora Advogada Consulente presta informação jurídica há vários anos, supostamente a reportar que mesma lhe tinha prestado uma consulta jurídica e que, por isso, não poderia representar o progenitor da sua filha, ou seja,;

c)     Perante esta informação e porque não se recordava da pessoa em causa, a Senhora Advogada Consulente verificou a lista de atendimentos da UMAR e terá confirmado que no ano de 2012 terá prestado uma consulta jurídica à referida Senhora, no âmbito da qual a mesma lhe terá solicitado algumas informações jurídicas a respeito da regulação do exercício das responsabilidades parentais da filha e que não são, afirma, em nada coincidentes com as razões por ela agora invocadas no atual pedido de alteração das responsabilidades parentais.

 

Em acréscimo ao referido, veio a Senhora Advogada Consulente, em 9 janeiro de 2019, por email, esclarecer que a “consulta jurídica prestada à senhora D. no ano 2012 teve como base questões atinentes ao terminus da relação com o pai da filha menor e ao litígio que tinha com o mesmo, surgindo ulteriormente questões que se prendiam com a implementação do exercício das responsabilidades parentais já reguladas.”

 

Tendo por base os referidos factos, vem a Senhora Advogada Consulente solicitar parecer sobre a legitimidade e continuidade do patrocínio.

 

Opinião

 

O objeto da consulta solicitada subsume-se à matéria relativa a conflitos de interesses prevista no artigo 99.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro (doravante apenas EOA). 

 

O artigo 99.º do EOA, sob a epígrafe “Conflito de Interesses”, determina nos seus números 1 a 6, o seguinte:

“1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado. 

3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes. 

4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito. 

5 - O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

6 - Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”

 

É claro, através da análise do citado artigo, que a limitação ao exercício da advocacia, por referência a outra atividade profissional ou cliente, visa evitar a violação dos deveres de isenção, independência e, fundamentalmente, do dever de sigilo profissional.

 

Decorre desta interpretação, que não bastará concluir-se pela inexistência de posições dissemelhantes para que seja afastado o regime jurídico previsto no artigo 99.º do EOA.

 

Com efeito, a interpretação do artigo 99.º do EOA permite aferir que o conflito de interesses não se esgota na iminência ou existência de uma situação concretamente conflituante, isto é, quando se verifica que estão em causa dois ou mais interesses que se opõem ou que se excluam reciprocamente, mas que também integra todas as demais situações em que, por via da aceitação de um (novo) mandato, o Advogado se coloque numa situação em que pode beneficiar ilegitimamente o seu mandante ou pôr em causa o cumprimento do segredo profissional relativamente a um seu anterior mandante e, a latere, de todos os demais deveres por que se deve pautar a atuação profissional do Advogado.

 

No caso concreto, a questão que se coloca é a de saber se o facto de a Senhora Advogada Consulente ter prestado consulta jurídica à progenitora sobre, para o que ora releva, “questões que se prendiam com a implementação do exercício das responsabilidades parentais já reguladas”, a impede de continuar a representar o progenitor no processo de alteração das responsabilidades parentais em curso.

 

Temos para nós que a situação descrita pela Senhora Advogada requerente se subsume, precisamente, ao disposto no artigo 99.º, n.º 1, 1ª parte do EOA.

 

Com este normativo legal, pretendeu o legislador evidenciar, essencialmente por razões de decoro, que o Advogado não deve representar a parte contrária àquela que representa, ou já representou, na mesma questão ou em questão conexa. É, pois, absolutamente pacífico que o Advogado que patrocinou uma questão (processo judicial ou não) não poderá, finda esta, intervir noutra questão em íntima conexão com aquela outra ou no mesmo pleito e no qual defende interesses opostos ao do seu anterior constituinte.

 

Ora, no caso concreto, temos que, em relação ao mesmo assunto, porque o que está em causa são, essencialmente, as responsabilidades parentais, rectius o exercício dessas mesmas responsabilidades parentais, a Senhora Advogada Consulente, primeiro, teve intervenção na qualidade de Advogada da progenitora da menor, a quem prestou aconselhamento jurídico (independentemente do concreto âmbito do aconselhamento jurídico prestado, pois que o que para aqui releva é o assunto objeto da consulta jurídica prestada), e agora tem intervenção na qualidade de mandatária do progenitor da menor no âmbito da ação para alteração das responsabilidades parentais em curso, com interesses, obviamente, divergentes.

 

E ainda que assim não se entenda, nunca podemos esquecer que a mens legis do artigo 99.º do EOA é necessariamente preventiva.

 

Ora, a mera possibilidade da existência de um conflito de interesses é, a nosso ver, inaceitável para a Advocacia, profissão que se quer independente (artigo 89.º do EOA), mas também exemplo de honestidade, probidade, retidão, lealdade, cortesia e sinceridade (artigo 88.º, n.º 2 do EOA), e, acima de tudo, inaceitável à luz dos valores de lealdade e confiança que o Cliente deve poder manter com o seu Advogado e vice-versa.

 

Não se pode permitir, nem como probabilidade que um Cliente possa ter como possível que o seu Advogado se possa posicionar no mesmo assunto como representante de duas partes com interesses conflituantes.

 

Em suma,

 

Mesmo que se tenha por certo que a Senhora Advogada Consulente atuaria com toda a probidade, somos do entendimento que na situação descrita, por evidente conflito de interesses, a Senhora Advogada Consulente deverá cessar o mandato assumido em representação do progenitor da menor.

 

É este, s.m.o., o nosso entendimento quanto à questão que nos foi colocada.

 

Notifique-se a Senhora Advogada Consulente pelo meio mais expedito.

 

Lisboa, 10 de janeiro de 2020.

 

O Vice-Presidente do Conselho Regional de Lisboa

(por delegação de poderes de 23 de fevereiro de 2017)

João Massano

João Massano

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