Pareceres do CRLisboa

Consulta 58/2019

Questão

 

Através de comunicação rececionada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em 20 de dezembro de 2019 (entrada com o número de registo) e esclarecimentos complementares prestados em 11 de março de 2020 (entrada com o número de registo), a Exma. Senhora Procuradora-Adjunta da Secção de do Departamento de Investigação e Ação Penal, Procuradoria da República da Comarca de Braga, veio solicitar a pronúncia do Conselho Regional de Lisboa quanto à (i) legitimidade da escusa para depor apresentada pela Exma. Senhora Dra., Ilustre Advogada, no âmbito do processo de inquérito n.º, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135.º, n.ºs 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal (doravante apenas CPP).

 

Entendimento do Conselho Regional de Lisboa

 

A existência da obrigação de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos e, ou, os documentos onde esses mesmos factos possam estar contidos, exceto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Regional respetivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo artigo 92.º, n.º 4 do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro (doravante apenas EOA), e pelo artigo 4.º do Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional - Regulamento n.º 94/2006, de 12 de junho, DR, II Série, ainda em vigor por força do disposto no artigo 3.º, n.º 7 da lei preambular do EOA.

 

Ainda que dispensado nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional. O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade ativa para solicitar, se assim o entender, dispensa do dever segredo.

 

A lei processual penal (1), porém, consagra um regime de exceção, previsto no artigo 135.º.

 

De harmonia com este regime, que será o relevante no caso ora em apreço, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do Estatuto, “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional. Deduzida a escusa perante o Juiz ou perante a autoridade judiciária que presidir ao ato, poderão suscitar-se dúvidas, que deverão ser fundadas, acerca da legitimidade da invocação do sigilo profissional e da escusa em depor que o mesmo fundamenta – cfr. artigo 135.º, n.º 2 do CPP. Quando tal acontecer, como no caso vertente, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cfr. artigo 135.º, n.º 4 do CPP.

 

Nesta sede, o que terá de se aferir é se o Advogado está ou não a invocar corretamente o dever de segredo profissional, o que implica que os factos sobre os quais se pretende que venha a depor deverão constituir matéria abrangida no âmbito do sigilo.

 

Cumprirá, pois, indagar se os factos aos quais o depoimento da Senhora Dra., Ilustre Advogada, é pretendido se deverão considerar abrangidos pela esfera de proteção do sigilo profissional.

 

Vejamos então.

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental, para não dizer, verdadeiramente basilar, que a obrigação de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia. Mais do que uma condição para o seu desempenho é, sobretudo, um traço essencial da sua própria existência. Sem o segredo profissional erigido em regra de ouro não existe, nem pode existir, Advocacia livre e independente, ficando abalado o direito de defesa dos cidadãos que recorrem ao Advogado para proteção dos seus direitos, liberdades e garantias.

 

No fim da linha, é o próprio Estado de Direito Democrático que é atingido no seu âmago, porquanto o sigilo profissional entre o Advogado e o seu Constituinte é estruturante e conditio sine qua non do direito de defesa dos cidadãos. Assim o tem entendido a lei e a própria jurisprudência da Ordem dos Advogados.

 

Com efeito, Advogado é acometido, por força de lei ordinária e pela Constituição da República Portuguesa de uma verdadeira «missão de interesse público», competindo-lhe, designadamente:

- defender o Estado de direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos;

- pugnar pela boa aplicação das leis;

- colaborar na administração da justiça e pugnar pelo seu rápido funcionamento;

- assegurar o acesso ao direito nos termos da Constituição, como defensores e patronos;

- opinar sobre os projetos de diplomas legislativos que interessem ao exercício da advocacia e o patrocínio judiciário em geral;

- propor alterações legislativas relevantes para o sistema de justiça.

(v. art.ºs 3.º nas suas diversas alíneas e 90.º, n.º 1, ambos do EOA).

 

São, assim, os Advogados garantes de importantes funções do Estado com consagração constitucional como é o “acesso ao direito e aos tribunais” e o “patrocínio judiciário” previstos no art.º 20.º, n.ºs 1 e 2 da Lei Fundamental e que constituem “elemento essencial da administração da justiça” como resulta do art.º 208.º da mesma Lei, sendo-lhes com esse propósito conferidas garantias e imunidades no exercício do mandato forense (art.º 150.º, n.º 2 do Código de Processo Civil), num claro e inequívoco reconhecimento da relevante função social de interesse público da profissão.

 

Atente-se, aliás, na redação do art.º 13.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/1013, de 26 de agosto –, com a epígrafe “Imunidade do mandato conferido a advogados”:

“Artigo 13.º

Imunidade do mandato conferido a advogados

1 — A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício dos atos próprios de forma isenta, independente e responsável, regulando-os como elemento indispensável à administração da justiça.

2 — Para garantir o exercício livre e independente de mandato que lhes seja confiado, a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz, designadamente:

a) O direito à proteção do segredo profissional;

b) O direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de atos conformes ao estatuto da profissão;

c) O direito à especial proteção das comunicações com o cliente e à preservação do sigilo da documentação relativa ao exercício da defesa;

d) O direito a regimes específicos de imposição de selos, arrolamentos e buscas em escritórios de advogados, bem como de apreensão de documentos”.

 

Se ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto o seu Constituinte, diretamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria Advocacia livre e independente, transformando-se os Advogados em testemunhas da acusação e desse modo se desvirtuando a sua função na administração da Justiça e no acesso ao direito, como lídimos defensores dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos.

 

Existem, em suma, segundo entendimento há muito perfilhado por este Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados (2) três grandes ordens de razões que estão na origem da consagração estatutária do dever (que é ao mesmo tempo direito) de o Advogado guardar segredo profissional sobre factos e documentos dos quais tome conhecimento no exercício da profissão:

a)     A indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre o Advogado e o cliente;

b)     O interesse público da função do Advogado enquanto agente ativo da administração da justiça;

c)     A garantia do papel do Advogado na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a paz social.

 

Sob a epígrafe “Segredo Profissional”, dispõe o artigo 92º do EOA, o seguinte:

“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o Bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.

5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.

8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever”.

 

Vejamos então.

 

Corre termos na Secção de do Departamento de Investigação e Acção Penal, o processo de inquérito n.º, em que são Denunciantes e e Denunciado o Exmo. Senhor Dr., Ilustre Advogado.

 

Investiga-se no processo de inquérito em curso a eventual prática dos crimes de abuso de confiança e de falsificação de documentos, previstos e punidos, respetivamente, pelos artigos 205.º e 256.º do Código Penal.

Subjacente ao processo de inquérito está a factualidade que passamos a enunciar, ainda que de forma perfunctória.

 

O ora Denunciado terá patrocinado os ora Denunciantes no processo que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do – Juiz, sob o n.º, no qual assumiam a qualidade de Autores e em que era Ré, nomeadamente, a sociedade comercial com a firma.

 

No âmbito da ação judicial em causa, a foi condenada a pagar aos Autores, precisamente os ora Denunciantes, a quantia global de € 38.255,27 (trinta e oito mil, duzentos e cinquenta e cinco euros e vinte e sete cêntimos).

 

Na queixa-crime apresentada, sustentam os Denunciantes o seguinte:

“No dia 25 de Julho de 2016 o Denunciado solicitou a presença dos Denunciantes no seu escritório e apresentou-lhes o documento “Declaração de Quitação” para que estes o assinassem – cfr. doc 6.

 

Porém, através da leitura daquele documento, os Participantes constataram que a sociedade, , além do valor 31.255,27€, havia procedido ao depósito da quantia de 14.867,68€ numa conta que não era sua mas sim, titulada pelo Participado.

 

Os Denunciantes não assinaram a referida declaração e pediram, uma vez mais, ao Denunciado a emissão da nota discriminativa e justificativa dos honorários que pretendia cobrar, bem como a entrega da totalidade do valor da indemnização que a sociedade havia sido condenada a pagar-lhes.

 

Passados dois ou três dias os Participantes voltaram a encontrar-se com o Participado, no escritório deste, e mais uma vez transmitiram que não assinavam a declaração sem que lhes fosse entregue, quer a nota de honorários quer o valor de 14.865,687€ de que o Denunciado se havia apropriado. (…)

 

Por consulta ao processo cível (…), constatou-se que o Denunciado no dia 9 de Setembro de 2016 juntou duas procurações com poderes especiais para desistir do pedido ou da instância, transigir nos termos e condições que entender e para receber custas de parte, taxas de justiça autoliquidadas ou quaisquer outras quantias a que tenha direito e podendo dar a respectiva quitação – fls. 1487 e 1488.

 

Nestas procurações foi aposta a data de 4 de Fevereiro de 2006, ou seja, a mesma data das que haviam sido juntas ao processo com a petição inicial – cfr doc 7.

 

Sucede que, os Denunciantes não assinaram pelo seu punho estas procurações e nunca conferiram ao Denunciado poderes para receber o valor da indemnização.

 

Acresce que, no dia 11 de Setembro de 2016 o Denunciado junta aos autos cíveis – fls 1491 – um requerimento em que declara que os Denunciantes “já receberam da ré a totalidade das quantias que esta foi condenada a pagar-lhes e respectivos juros e das quais vêm, por isso, dar a devida quitação …” – cfr. doc.8.

 

Ora, tal não corresponde à verdade, pois os Denunciantes apenas receberam o valor de 31.255,27€, na medida em que o Denunciado, contra vontade daqueles, apoderou-se do restante valor pago pela sociedade, que corresponde a 19.865,68€ - cfr. doc.9 – e não a 14.865,68€, como constava da declaração que o Denunciado pretendia ver assinada pelos Queixosos – doc. 4. (….)”.

 

Os Denunciantes requereram, em 14 de junho de 2019, a audição da Exma. Senhora Advogada Dra. porquanto, e no entendimento daqueles, a mesma possa “contribuir para o esclarecimento das circunstâncias e motivos pelos quais a sociedade efectuou o pagamento da indemnização a que foi condenada, por transferência bancária para duas contas, sendo uma delas titulada pelo Denunciado, …”.

 

Em 4 de outubro de 2019, a Exma. Senhora Dra. deslocou-se à ª Esquadra de Investigação Criminal da PSP para prestar declarações, e à matéria sobre a qual foi interrogada respondeu: “A sua intervenção no processo em causa foi enquanto advogada pelo que se encontra vinculada ao dever de sigilo profissional, pelo que nada poderá dizer enquanto não for autorizado o levantamento desse dever”.

 

Feito o enquadramento factual, haverá agora que proceder à subsunção dos factos à lei.

 

A título preliminar refira-se que os elementos que foram colocados à nossa disposição pelo Ministério Público não nos permitiram, só por si, concluir com o rigor que a matéria exige, pela existência ou não de sigilo profissional no caso ora sob resposta. Razão pela qual procedeu este Conselho, nos termos legais, às devidas averiguações junto da Exma. Senhora Advogada Dra..

 

Dos esclarecimentos prestados pela Exma. Senhora Advogada Dra. – cujos fundamentos não podemos aqui revelar sob pena de estarmos a violar o sigilo profissional a que também estamos adstritos, por força do disposto no artigo 92.º, n.º 1, alínea b) do EOA – conclui-se, sem margem para dúvidas, que a Senhora Advogada teve conhecimento dos factos que subjazem ao processo de inquérito em curso no exercício da profissão e por causa da sua qualidade de Advogado, mormente na qualidade de mandatária da sociedade comercial com a firma no processo cível que correu os seus no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do – Juiz, sob o n.º.

 

Neste conspecto, recaindo sobre a Exma. Senhora Advogada Dra. a obrigação de guardar sigilo, esta deverá ser mantida enquanto, pelos meios legalmente previstos, não cessar.

 

E, para o efeito, a lei estabelece apenas dois mecanismos que se diferenciam, desde logo, a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

  • Dispensa de segredo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado detentor dessa obrigação ao Presidente do Conselho Regional competente, sendo concedida caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 92.º, n.º 4 do EOA;
  • Incidente processual de quebra de sigilo profissional.

 

Lisboa, 23 de março de 2020.

 

A Assessora Jurídica do CRL

Sandra Barroso

 

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

 

Pelo exposto, e sem necessidade de maiores ou melhores considerações, entendemos que a escusa para depor apresentada pela Exma. Senhora Advogada Dra. é legítima, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135.º n.ºs 1, 2 e 4 do CPP.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 23 de março de 2020.

 

O Presidente do Conselho Regional de Lisboa

João Massano

 

 

 

 

 

(1) Também aplicável ao processo civil – vide Artigos 417.º n.ºs 3 al. c) e 4 e 497.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil.

(2) Parecer do Conselho Regional de Lisboa n.º 2/2001, aprovado em sessão plenária no dia 13.03.2003, no qual foi relator o Dr. José Ferreira de Almeida. 

Sandra Barroso

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