Pareceres do CRLisboa

Consulta 33/2017

Consulta n.º 33/2017

 

Questão

 

Mediante comunicação rececionada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (……) (entrada com o número de registo (…….) , o Exmo. Senhor (……..) veio solicitar ao Conselho Regional de Lisboa a emissão de parecer, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135.º, números 3 e 4 do Código de Processo Penal (doravante CPP).

 

O incidente de quebra do segredo profissional foi suscitado no âmbito do processo de inquérito pendente no (………), sob o n.º (……..), quanto ao Exmo. Senhor Dr. (……), Ilustre Advogado. 

 

Subjacente o incidente processual de quebra do segredo profissional ora suscitado, está a factualidade que passamos a enunciar, ainda que de forma sintética:

  1. No processo de inquérito n.º (………) investiga-se a prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, ocorrido no interior do Estabelecimento Prisional de (…….);
  2. A substância inicialmente apreendida na posse do recluso (…….) foi, num primeiro momento, assumida pelo recluso (…..) como sendo sua;
  3. Ulteriormente, o recluso (……) retratou-se, afirmando que a droga pertencia, afinal, ao recluso (………) e que este, exercendo sobre si alguma influência, o determinou a fazê-lo;

  4. Mas afirmou que o recluso (……..) se disponibilizou a contratar um Advogado, no sentido de este o representar, nomeadamente, no âmbito do processo disciplinar;
  5. Encetadas as devidas diligências junto do Estabelecimento Prisional de (……), apurou-se que (……..) fora assistido no processo disciplinar pelo Exmo. Senhor Dr. (………);

  6. Chamado a depor no âmbito do processo de inquérito n.º (……..), o Exmo. Senhor Dr. (……..) escusou-se a depor invocando sigilo profissional, ao abrigo da faculdade concedida pelo n.º 1 do artigo 135.º do CPP, sustentando que “patrocina (……..), arguido no processo (……..) conforme consta da procuração aí junta, bem como a fls 6 da presente carta precatória”;

  7. Considerada legítima a escusa, foi suscitado o incidente de quebra do segredo profissional junto do (……….);

  8. Recebido o incidente, veio o Exmo. Senhor (……) solicitar a pronúncia do Conselho Regional de Lisboa, nos termos e para efeitos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 135.º do CPP.

 

Entendimento do Conselho Regional de Lisboa

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental e verdadeiramente basilar que o dever de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.

Mas não só.

Trata-se de dever de primordial importância para o reconhecimento da plenitude do Estado do Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.

 

É que o Estado de Direito Democrático não só exige um poder judicial independente, como também pressupõe e postula o exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável.

 

Ora, condição essencial ao exercício da profissão é a absoluta confiança que deve presidir à relação Advogado/Cliente, fundada, naturalmente, no princípio do respeito pelo segredo profissional, a que a lei e a Constituição asseguram, com latitude, a adequada tutela.

 

Transcendendo o âmbito da relação Advogado/Cliente, o segredo profissional reveste-se ainda de uma dimensão de ordem pública, tal como resulta claro do regime legal constante do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor (aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro). E isto porque o sigilo tem outras dimensões e outros beneficiários para além do Cliente, devendo o Advogado ser, nas suas múltiplas relações sociais e profissionais, merecedor de confiança e isenção. Não apenas o Advogado individualmente considerado, como profissional liberal que é, mas como membro de uma classe profissional.

 

Por isso convirá realçar, de forma plenamente convicta, que se está na presença de um dever que constitui um princípio estruturante da Advocacia, assente não só na tutela dos interesses particulares que lhe possam estar subjacentes, mas adquirindo igualmente uma dimensão de ordem pública. Mais do que um dever do próprio Profissional, “ o sigilo é um dever de toda a classe, é condição da plena dignidade do Advogado bem como da Advocacia”[1].

 

Contudo, tal não significa que o dever de segredo seja absoluto.

 

Situações existem em que o levantamento do dever de guardar sigilo profissional se poderá, excecionalmente, justificar.

 

Assim, e para o efeito, estabelece a lei dois mecanismos que se diferenciam desde logo a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

 

  1. Dispensa do segredo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado adstrito ao dever de segredo ao Presidente do Conselho Regional competente, sendo concedida, caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 92.º, n.º 4 do EOA;
  2. Incidente processual de quebra de sigilo profissional, previsto no artigo 135.º do Código de Processo Penal[2], tendo legitimidade para o desencadear qualquer das partes em juízo ou a autoridade judiciária.

 

A decisão da quebra de sigilo é tomada, com audição prévia da Ordem dos Advogados, audição essa que recairá, inevitavelmente, sobre o preenchimento ou não preenchimento das condições de que depende a quebra do sigilo profissional, ou seja, sobre a existência de um interesse superior aos interesses que se visa proteger com o dever de segredo.

 

Assim, para que se possa concluir pela existência de um interesse preponderante, haverá que verificar-se, em concreto e nos termos em que o pedido de quebra se encontra fundado:

 

  1. se o depoimento é absolutamente necessário para a descoberta da verdade material;
  2. se o crime apresenta uma gravidade tal que implicará a quebra do dever de sigilo profissional, dever este que, conforme tem sido referido em diversa doutrina e jurisprudência, quer dos diversos órgãos da Ordem dos Advogados, quer dos tribunais, se reveste de interesse público (o que, desde logo, afastará a possibilidade de quebra em crimes de menor danosidade social);
  3. a necessidade da proteção dos bens jurídicos afetados (tendo em conta a importância destes).

 

Em particular, no que à absoluta necessidade do depoimento diz respeito, haverá, nos termos do Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional – Regulamento n.º 94/2006, de 12 de junho, DR, II Série, ainda em vigor por força do disposto no artigo 3.º, n.º 7 da lei preambular do Estatuto -, que verificar se o depoimento do Advogado com quebra do sigilo se reveste de imprescindibilidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser indispensável (ou seja, imprescindível, e não meramente útil) face ao objetivo de prova visado; de essencialidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser absolutamente determinante; e de exclusividade, pressupondo este requisito a inexistência de qualquer outro meio de prova que não o depoimento do obrigado ao sigilo.

 

Vejamos então.

 

Refira-se, em primeira linha, que, tal como se encontra recortado o pedido de audição da Ordem dos Advogados, nada nos permite concluir pela existência de um interesse preponderante ao dever de sigilo que leve ao sacrifício deste.

 

Para que seja quebrado o dever de sigilo profissional, será sempre exigível uma situação de total excecionalidade e absoluta necessidade da audição do Advogado em causa sobre os factos de que tomou conhecimento no exercício da profissão.

 

O que não se manifesta de forma nenhuma na fundamentação – rectius, na escassez de fundamentação – em que assenta o incidente de quebra de sigilo profissional deduzido e ora sob análise.

 

De facto, desconhecemos qual a suficiência ou insuficiência dos demais meios de prova (nomeadamente, documental e testemunhal), aptos a fazer prova dos factos aos quais o depoimento do Exmo. Senhor Dr. (……) é pretendido.

 

De resto, não nos parece suficiente, salvo o devido respeito, que o pedido de audição de um Advogado com quebra do segredo profissional se funde, única e exclusivamente, na sua essencialidade para a descoberta da verdade material e para a administração da justiça, no caso penal.

 

A fundamentação factual da total excecionalidade e absoluta necessidade da audição do Advogado seria, a nosso ver, relevante para a pronúncia a emitir.

 

Mas mais ainda. É que a tal situação excecional não se mostra minimamente fundamentada ou concretizada no incidente de quebra de sigilo profissional ora em apreço, desde logo, porque também desconhecemos se o depoimento do Exmo. Senhor Dr. (….) é, efetivamente, um meio de prova exclusivo dos factos aos quais o seu depoimento é pretendido. 

 

O recurso ao depoimento de Advogado para prova deve ser sempre encarado como um meio excecionalíssimo, sob pena de se banalizarem os deveres fundamentais desta nossa profissão.

 

O meio de prova sujeito a sigilo terá sempre de ser um meio de prova exclusivo, único meio de prova de determinado facto ou acervo de factos.

Não interessa, em matéria de sigilo, que o meio de prova sujeito a sigilo seja o melhor, o mais eficaz ou o meio de prova de obtenção mais simples. Terá de ser o único meio de prova da factualidade visada nos autos.

 

E, no caso concreto, nada nos permite concluir nesse sentido. Desconhecemos se existem meios de prova alternativos à quebra do segredo profissional que permitam ao Ministério Público colher prova dos factos aos quais pretende ouvir o Exmo. Senhor Dr. (……).

 

Mas haverá ainda que enfatizar o seguinte.

 

Dos elementos colocados à nossa disposição, resulta indiciado que o Exmo. Senhor Dr. (…….) é o mandatário do arguido, (…….), no processo de inquérito no âmbito do qual é agora pretendido o seu depoimento.

 

Ora, é nosso entendimento que o Advogado nunca pode depor em processo no qual intervenha (ou mesmo, tenha intervindo) como Advogado constituído.

 

Pois que, incontestavelmente, tal é incompatível com a dignidade do mandato forense e com o estatuto do Advogado enquanto participante e elemento essencial à administração da justiça, conforme consagrado no artigo 208.º da lei fundamental.

 

Neste conspecto, entendemos que existe, no caso vertente, uma impossibilidade objetiva de o Exmo. Senhor Dr. (……) depor como testemunha que obsta (também) à sua audição com quebra do segredo profissional.

 

Lisboa, 18 de outubro de 2017.
A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

 

Nestes termos, entendemos que não estão reunidas as condições de que depende a audição do Exmo. Senhor Dr. (……), Ilustre Advogado, com quebra do segredo profissional, devendo prevalecer os interesses que subjazem ao instituto jurídico-deontológico do dever de segredo profissional, em detrimento do interesse da administração da justiça penal.


Ademais, entendemos que, no presente caso, existe mesmo uma impossibilidade objetiva de o Exmo. Senhor Dr. (……) depor como testemunha no processo de inquérito em curso, impossibilidade essa que advém da circunstância de o Exmo. Senhor Advogado ser (ou ter sido) Advogado do arguido no processo de inquérito n.º (…….). 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 18 de outubro de 2017.
O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

 

[1] Bastonário Dr. Augusto Lopes Cardoso, in “Do segredo profissional na Advocacia”, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, p. 17.

[2] Também aplicável ao processo civil por remissão do artigo 417º n.º 4 do Código de Processo Civil.

 

Sandra Barroso

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