Pareceres do CRLisboa

Consulta 37/2017

Consulta n.º 37/2017

 

Questão

 

Através de comunicação rececionada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (……) de 2017 (entrada com o número de registo (…..)), a Exma. Senhora Juiz de Direito do Tribunal (……), Juízo (……), veio solicitar a pronúncia deste Conselho quanto à (i) legitimidade da escusa para depor apresentada pelo Exmo. Senhor Dr. (…..), Il. Advogado, no âmbito do processo n.º (…..), nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135º, n.ºs 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal (doravante apenas CPP).

 

Entendimento do Conselho Regional de Lisboa

 

A existência da obrigação de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos e, ou, os documentos onde esses mesmos factos possam estar contidos, exceto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Regional respetivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo artigo 92º, n.º 4 do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro (doravante apenas EOA), e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional - Regulamento n.º 94/2006, de 12 de junho, DR, II Série, ainda em vigor por força do disposto no artigo 3º, n.º 7 da lei preambular do EOA.

 

Ainda que dispensado nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional. O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade ativa para solicitar, se assim o entender, dispensa do dever de segredo.

 

A lei processual penal[1], porém, consagra um regime de exceção, previsto no artigo 135.º.

 

De harmonia com este regime, que será o relevante no caso ora em apreço, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do EOA, “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional. Deduzida a escusa perante o Juiz ou perante a autoridade judiciária que presidir ao ato, poderão suscitar-se dúvidas, que deverão ser fundadas, acerca da legitimidade da invocação do sigilo profissional e da escusa em depor que o mesmo fundamenta – cfr. artigo 135º, n.º 2 do CPP.

 

Quando tal acontecer, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cfr. artigo 135º, n.º 4 do CPP.

Nesta sede, o que terá de se aferir é se o Advogado está ou não a invocar corretamente o dever de segredo profissional, o que implica que os factos sobre os quais se pretende que venha a depor deverão constituir matéria abrangida no âmbito do sigilo.

 

Cumprirá, pois, indagar se a factualidade à qual o depoimento do Senhor Dr. (….) Il. Advogado, é pretendido - que, no caso vertente, consideramos que seja a vertida na contestação, já que o Senhor Advogado foi arrolado como testemunha pelos arguidos (……..) e (…..) -, se deverá considerar abrangida pela esfera de proteção do sigilo profissional.

 

Vejamos então.

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental, para não dizer, verdadeiramente basilar, que a obrigação de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia. Mais do que uma condição para o seu desempenho é, sobretudo, um traço essencial da sua própria existência.

Sem o segredo profissional erigido em regra de ouro não existe, nem pode existir, Advocacia livre e independente, ficando abalado o direito de defesa dos cidadãos que recorrem ao Advogado para proteção dos seus direitos, liberdades e garantias.

 

No fim da linha, é o próprio Estado de Direito Democrático que é atingido no seu cerne, porquanto o sigilo profissional entre o Advogado e o seu Constituinte é estruturante e conditio sine qua non do direito de defesa dos cidadãos. Assim o tem entendido a lei e a própria jurisprudência da Ordem dos Advogados.

 

Com efeito, Advogado é acometido, por lei ordinária e pela Constituição, de uma verdadeira «missão de interesse público», competindo-lhe, designadamente:

- defender o Estado de direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos;

- pugnar pela boa aplicação das leis;

- colaborar na administração da justiça e pugnar pelo seu rápido funcionamento;

- assegurar o acesso ao direito nos termos da Constituição, como defensores e patronos;

- opinar sobre os projetos de diplomas legislativos que interessem ao exercício da advocacia e o patrocínio judiciário em geral;

- propor alterações legislativas relevantes para o sistema de justiça.

(v. art.ºs 3.º nas suas diversas alíneas e o artigo 90.º, n.º 1 do EOA).

 

São, assim, os Advogados garantes de importantes funções do Estado com consagração constitucional como é o “acesso ao direito e aos tribunais” e o “patrocínio judiciário” previstos no art.º 20.º, n.ºs 1 e 2 da Lei Fundamental e que constituem “elemento essencial da administração da justiça” como resulta do art.º 208.º da mesma Lei, sendo-lhes com esse propósito conferidas garantias e imunidades no exercício do mandato forense (art.º 150.º, n.º 2 do Código de Processo Civil), num claro e inequívoco reconhecimento da relevante função social de interesse público da profissão.

 

Atente-se, aliás, na redação do art.º 13.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/1013, de 26 de agosto –, com a epígrafe “Imunidade do mandato conferido a advogados”:


“Artigo 13.º

Imunidade do mandato conferido a advogados

1 — A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício dos atos próprios de forma isenta, independente e responsável, regulando-os como elemento indispensável à administração da justiça.

2 — Para garantir o exercício livre e independente de mandato que lhes seja confiado, a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz, designadamente:

  1. a) O direito à proteção do segredo profissional;
  2. b) O direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de atos conformes ao estatuto da profissão;
  3. c) O direito à especial proteção das comunicações com o cliente e à preservação do sigilo da documentação relativa ao exercício da defesa;
  4. d) O direito a regimes específicos de imposição de selos, arrolamentos e buscas em escritórios de advogados, bem como de apreensão de documentos”.

 

Se ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto o seu constituinte, diretamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria Advocacia livre e independente, transformando-se os Advogados em testemunhas de defesa e desse modo se desvirtuando a sua função na administração da Justiça e no acesso ao direito.

 

Existem, em suma, segundo entendimento há muito perfilhado por este Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados[2] três grandes ordens de razões que estão na origem da consagração estatutária do dever (que é ao mesmo tempo direito) do advogado guardar segredo profissional sobre factos e documentos dos quais tome conhecimento no exercício da profissão:

  1. A indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre o advogado e o cliente.
  2. O interesse público da função do advogado enquanto agente ativo da administração da justiça.
  3. A garantia do papel do advogado na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a paz social.

 

Sob a epígrafe “Segredo Profissional”, dispõe o artigo 92º do EOA, o seguinte:

“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:


a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o Bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.

5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.

8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever”.

 

Vejamos então o caso concreto.

 

Dos elementos colocadas à nossa disposição, decorre, com interesse para a pronúncia a emitir, o seguinte.

 

(….) e (……) estão acusados da prática de factos suscetíveis de integrar, em coautoria material e na forma consumada, um crime de insolvência dolosa, previsto e punido pelo artigo 227º, n.º 1, alíneas a), b) e c) do Código Penal.

 

Subjacente à mencionada acusação, estão os atos melhor descritos ao longo do libelo acusatório e que os arguidos terão praticado na qualidade de gerentes de facto da sociedade comercial com a firma (……..), entretanto, declarada insolvente.

 

Em sede de contestação, os arguidos defendem-se da acusação alegando uma série de factos diretamente relacionados com o Advogado da (…..), precisamente, o Senhor Dr. (…..), Il. Advogado.

 

Antes de mais, permitimo-nos enfatizar que, nos termos da lei processual penal, o Advogado pode (e deve) escusar-se a depor sempre que, em consciência, entenda que o seu depoimento envolve a divulgação de qualquer facto sigiloso ou sempre que, em consciência, se lhe suscitem dúvidas quanto à natureza sigilosa ou não desse mesmo facto.

 

É que o segredo profissional do Advogado serve, precisamente, como obstáculo – e lícito -, à descoberta da verdade material.

 

Consabidamente, a matéria do segredo profissional exige, sempre e em qualquer circunstância, por parte do órgão decisor uma análise casuística.

 

Análise casuística essa que deve nortear-se pelas seguintes premissas:

  1. Forma como o conhecimento do facto chegou ao Advogado, quem o revelou e em que quadro fáctico;
  2. Teor do facto, que ajuda a perceber se tem ou não a natureza de segredo, pois nem tudo o que é revelado ao Advogado é, em si, um segredo;
  3. Circunstâncias do conhecimento e da revelação.

 

No caso vertente, fazendo fé na justificação invocada pela testemunha (cf. requerimento com a ref.ª citius (….) ), mas, acima de tudo, olhando para a factualidade que subjaz à defesa apresentada pelos arguidos em sede de contestação, é para nós assaz evidente que o depoimento pretendido recairá sobre matéria abrangida pela esfera de proteção do segredo profissional.

 

De facto, não podemos olvidar que a obrigação de sigilo existe não só quando o Advogado pratica um qualquer ato próprio da profissão, tal como se encontram definidos na Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto, que define o sentido e o alcance dos atos próprios dos Advogados e dos Solicitadores, como também quando toma conhecimento ou pratica um qualquer facto ou acervo de factos, por causa da sua qualidade de Advogado.

 

Traçado este quadro, dúvidas não temos de que a factualidade à qual o depoimento do Senhor Dr. (….), Il. Advogado, é pretendido cai diretamente na cláusula geral contida no artigo 92º, n.º 1 do EOA.

 

Impendendo sobre o Senhor Dr. (……), Il. Advogado, a obrigação de guardar sigilo, esta deverá ser mantida enquanto, pelos meios legalmente previstos, não cessar.

 

E, para o efeito, a lei estabelece apenas dois mecanismos que se diferenciam, desde logo, a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

  • Dispensa de segredo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado detentor dessa obrigação ao Presidente do Conselho Regional competente, sendo concedida caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 92º, n.º 4 do EOA;
  • Incidente processual de quebra de sigilo profissional.

 

EM SUMA:  

 

Tudo ponderado, e salvo melhor opinião, entendemos que a escusa para depor apresentada pelo Senhor Dr. (….), Il. Advogado, é legítima, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135.º n.ºs 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal.

 

Lisboa, 9 de outubro de 2017.

 

A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso

 

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 9 de outubro de 2017.
O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

 

 

[1] Também aplicável ao processo civil – vide Artigos 417.º n.ºs 3 al. c) e 4 e 497.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil.

[2] Parecer do Conselho Regional de Lisboa n.º 02/01, aprovado em sessão plenária no dia 13.03.2003, no qual foi relator o Dr. José Ferreira de Almeida.  

Sandra Barroso

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