Pareceres do CRLisboa

Consulta 38/2017

 

CONSULTA N.º 38/2017

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OBJETO

 

Mediante requerimento rececionado nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados na presente data (entrada com o número de registo (….)), veio a Senhora Advogada Dra. (…….), titular da cédula profissional n.º (….), solicitar, ao abrigo do disposto no artigo 54º, n.º 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro (doravante apenas EOA), a emissão de Parecer quanto a uma questão de eventual conflito de interesses.

 

O enquadramento factual, tal como exposto pela Senhora Advogada Consulente, é, em síntese, o seguinte:

  1. Durante cerca de um ano e meio, a Senhora Advogada Consulente prestou serviços jurídicos à empresa A, tendo neste âmbito, e como refere, patrocinado “vários processos de execução”.
  2. A empresa A era sócia da empresa B, onde detinha 51% do capital social e a pessoa singular C 49%.
  3. Em maio de 2016, a empresa A cedeu a C as quotas que detinha na empresa B.
  4. Em final de outubro de 2016, a Senhora Advogada Consulente deixou de prestar serviços à empresa A.
  5. A Senhora Advogada Consulente foi agora contactada por C para a representar em juízo, no âmbito de um litígio que surgiu relativamente ao contrato de cessão de quotas que celebrou com a empresa A.

 

Neste contexto, vem a Senhora Advogada Consulente solicitar a emissão de parecer, não obstante entender que inexiste qualquer conflito de interesses que a impeça de assumir o novo mandato.

 

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COMPETÊNCIA CONSULTIVA DO CONSELHO REGIONAL DE LISBOA

 

Nos termos do disposto no artigo 54º, n.º 1, alínea f) do EOA, compete aos Conselhos Regionais pronunciarem-se sobre questões de carácter profissional que se suscitem no âmbito da sua competência territorial.

 

A competência consultiva dos Conselhos Regionais está, assim, limitada pelo EOA às questões inerentemente estatutárias, isto é, as que decorrem dos princípios, regras, usos e praxes que regulam e orientam o exercício da profissão, maxime as que decorrem das normas do Estatuto e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido pela lei aos órgãos da Ordem dos Advogados.

 

A matéria colocada à apreciação deste Conselho Regional subsume-se, precisamente, a uma questão de carácter profissional nos termos descritos, pelo que haverá que proceder à emissão de Parecer quanto à questão que nos foi colocada.

 

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ANÁLISE E ENQUADRAMENTO ESTATUTÁRIO

 

“A Deontologia é o conjunto de regras ético-jurídicas pelas quais o advogado deve pautar o seu comportamento profissional e cívico. (...) O respeito pelas regras deontológicas e o imperativo da elevada consciência moral, individual e profissional, constitui timbre da advocacia.” – António Arnaut, Iniciação à Advocacia – História – Deontologia – Questões Práticas, p. 49 e 50, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996.

 

 

O Advogado, no exercício da sua profissão está vinculado ao cumprimento escrupuloso de um conjunto de deveres consignados no EOA e ainda àqueles que a lei, os usos, os costumes e as tradições profissionais lhe impõem – cf. artigo 88º, n.º 1 do EOA.

O cumprimento escrupuloso e pontual de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.

 

O Título III do Estatuto trata da “Deontologia Profissional”, fixando, no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando, no Capítulo II, a questão das relações entre o Advogado e o cliente. 

 

É neste último Capítulo e, mais especificamente no seu artigo 99º, que se encontra regulado o denominado “Conflito de Interesses”.

Aí estão plasmadas várias situações em que existe uma situação de incompatibilidade para o exercício do patrocínio.

A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente pelo teor do artigo 99º do EOA, resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e constitui expressa manifestação do princípio geral estatuído no artigo 89º do EOA, segundo o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.

Nesta medida, o regime legal estabelecido a propósito do conflito de interesses cumpre uma tripla função[1]:

  1. Defender a comunidade em geral, e os clientes de um qualquer Advogado em particular, de atuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes;
  2. Defender o próprio Advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de atuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes;
  3. Defender a própria profissão, a Advocacia, do anátema que sobre ela recairia na eventualidade de se generalizarem este tipo de situações.

 

Neste conspecto, preceitua a norma legal em apreço o seguinte:

“1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.

2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

5 - O Advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente. 

6 - Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.

 

Vejamos então o caso concreto. 

 

Do ponto de vista objetivo, diremos que a circunstância de a Senhora Advogada Consulente ter sido Advogada da empresa A não é, de per si – e, frise-se, do ponto de vista objetivo –, suficiente para, sem mais, se concluir pela existência de conflito de interesses impeditivo da assunção do novo mandato.

 

De facto, o EOA não contém, em matéria de conflito de interesses, uma proibição geral de patrocínio contra quem foi anteriormente seu cliente, mas apenas uma proibição de patrocínio:

  1. Contra quem seja por si patrocinado noutra causa pendente;
  2. Em causas em que já tenha intervindo ou que sejam conexas com outras em que tenha representado a parte contrária;
  3. Em causas que possam colocar em crise o sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

 

A matéria do conflito de interesses resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão. O que significa que a matéria do conflito de interesses é, em primeira linha, uma questão de consciência do Advogado.

 

Cabe a cada Advogado formular um juízo de consciência sobre se a relação de confiança que estabeleceu com um seu antigo cliente lhe permite, livremente e sem constrangimentos, assumir agora um patrocínio contra ele.

 

E desde já se diga que, se repugna a um Advogado litigar contra quem foi seu antigo cliente, tal deve ser entendido como causa justificante da recusa de patrocínio – ainda que isso não resulte de norma expressa.

Outra conclusão não se poderia tirar dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão.

 

Mas, se por qualquer motivo – que será legítimo, diga-se, e sem que tal implique qualquer juízo depreciativo da conduta do Advogado – tal repugnância não existir, haverá então, em segunda linha, que averiguar se uma determinada situação consubstancia ou não conflito de interesses.

 

Assim, deverá a Senhora Advogada Consulente avaliar:

  1. se é inequívoco que o assunto que C pretende confiar-lhe não é conexo com qualquer outro em que tenha intervindo ou de que tenha tomado conhecimento por força da relação profissional estabelecida com a antiga cliente, a empresa A;
  2. se a assunção do novo mandato não afetará a sua independência e a sua isenção, enquanto princípios estruturantes da profissão;
  3. se a assunção do novo mandato não colocará em crise o sigilo profissional relativamente aos assuntos que anteriormente lhe foram confiados pela empresa A;
  4. e se do conhecimento dos assuntos da antiga cliente não resultam vantagens ilegítimas ou injustificadas para C, e que agora pretende representar.

 

E, diga-se que, só a Senhora Advogada Consulente estará em posição de fazer essa avaliação.

 

Contudo, verificando-se qualquer uma das circunstâncias enunciadas supra, deverá a Senhora Advogada Consulente recusar a assunção do novo mandato.  

 

Permitimo-nos ainda enfatizar que o espírito da norma legal contida no artigo 99º do EOA é necessariamente preventivo, em ordem a prevenir que, mesmo nos casos em que não se antolhe um conflito, ele não se venha ou não possa vir a verificar-se.

Ou seja, basta que exista essa mera potencialidade, pois que o Advogado, no exercício da sua profissão, deve estar sempre acima de qualquer suspeita. 

 

Assim sendo, deverá a Senhora Advogada Consulente ponderar, antes da assunção do novo mandato, se existe o risco, ainda que potencial, de vir a verificar-se um conflito de interesses.

Existindo esse risco, ainda que meramente potencial, deverá a Senhora Advogada Consulente recusar a assunção do novo mandato.

 

É este, s.m.o., o nosso entendimento quanto à questão que nos foi colocada.

 

Lisboa, 18 de setembro de 2017.

 

A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 18 de setembro de 2017.

 

O Presidente do Conselho Regional de Lisboa      
António Jaime Martins

 

 

[1] Cfr. Parecer do Conselho Distrital de Lisboa n.º 6/02, aprovado em 16.10.2002, e no qual foi relator o Senhor Advogado Dr. João Espanha.

Sandra Barroso

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