Pareceres do CRLisboa

Consulta 40/2017

Consulta n.º 40/2017

 

Questão

 

Através de comunicação rececionada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (….) de 2017 (entrada com o número de registo (…)), a Exma. Senhora Juiz (…….), (…….), veio solicitar a pronúncia deste Conselho quanto à (i) legitimidade da escusa para depor apresentada pela Exma. Senhora Dra. (…..), Ilustre Advogada, no âmbito do processo n.º (….), nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135.º, n.ºs 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal (doravante apenas CPP).

 

Entendimento do Conselho Regional de Lisboa

 

A existência da obrigação de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos e, ou, os documentos onde esses mesmos factos possam estar contidos, exceto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Regional respetivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo artigo 92.º, n.º 4 do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro (doravante apenas EOA), e pelo artigo 4.º do Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional - Regulamento n.º 94/2006, de 12 de junho, DR, II Série, ainda em vigor por força do disposto no artigo 3.º, n.º 7 da lei preambular do EOA.

 

Ainda que dispensado nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional. O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade ativa para solicitar, se assim o entender, dispensa do dever segredo.

 

A lei processual penal[1], porém, consagra um regime de exceção, previsto no artigo 135.º.

 

De harmonia com este regime, que será o relevante no caso ora em apreço, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do Estatuto, “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional. Deduzida a escusa perante o Juiz ou perante a autoridade judiciária que presidir ao ato, poderão suscitar-se dúvidas, que deverão ser fundadas, acerca da legitimidade da invocação do sigilo profissional e da escusa em depor que o mesmo fundamenta – cfr. artigo 135.º, n.º 2 do CPP. Quando tal acontecer, como no caso vertente, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cfr. artigo 135.º, n.º 4 do CPP.

 

Nesta sede, o que terá de se aferir é se o Advogado está ou não a invocar corretamente o dever de segredo profissional, o que implica que os factos sobre os quais se pretende que venha a depor deverão constituir matéria abrangida no âmbito do sigilo.

 

Cumprirá, pois, indagar se os factos aos quais o depoimento da Senhora Dra. (….), Ilustre Advogada, é pretendido se deverão considerar abrangidos pela esfera de proteção do sigilo profissional.

 

Vejamos então.

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental, para não dizer, verdadeiramente basilar, que a obrigação de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia. Mais do que uma condição para o seu desempenho é, sobretudo, um traço essencial da sua própria existência.

Sem o segredo profissional erigido em regra de ouro não existe, nem pode existir, Advocacia livre e independente, ficando abalado o direito de defesa dos cidadãos que recorrem ao Advogado para proteção dos seus direitos, liberdades e garantias.

 

No fim da linha, é o próprio Estado de Direito Democrático que é atingido no seu cerne, porquanto o sigilo profissional entre o Advogado e o seu Constituinte é estruturante e conditio sine qua non do direito de defesa dos cidadãos. Assim o tem entendido a lei e a própria jurisprudência da Ordem dos Advogados.

 

Com efeito, Advogado é acometido, por da lei ordinária e pela Constituição de uma verdadeira «missão de interesse público», competindo-lhe, designadamente:

- defender o Estado de direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos;

- pugnar pela boa aplicação das leis;

- colaborar na administração da justiça e pugnar pelo seu rápido funcionamento;

- assegurar o acesso ao direito nos termos da Constituição, como defensores e patronos;

- opinar sobre os projetos de diplomas legislativos que interessem ao exercício da advocacia e o patrocínio judiciário em geral;

- propor alterações legislativas relevantes para o sistema de justiça.

(v. art.ºs 3.º nas suas diversas alíneas e o 85.º, n.º 1 do EOA).

 

São, assim, os Advogados garantes de importantes funções do Estado com consagração constitucional como é o “acesso ao direito e aos tribunais” e o “patrocínio judiciário” previstos no art.º 20.º, n.ºs 1 e 2 da Lei Fundamental e que constituem “elemento essencial da administração da justiça” como resulta do art.º 208.º da mesma Lei, sendo-lhes com esse propósito conferidas garantias e imunidades no exercício do mandato forense (art.º 150.º, n.º 2 do Código de Processo Civil), num claro e inequívoco reconhecimento da relevante função social de interesse público da profissão.

 

Atente-se, aliás, na redação do art.º 13.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/1013, de 26 de agosto –, com a epígrafe “Imunidade do mandato conferido a advogados”:

 

“Artigo 13.º

Imunidade do mandato conferido a advogados

 

1 — A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício dos atos próprios de forma isenta, independente e responsável, regulando-os como elemento indispensável à administração da justiça.

2 — Para garantir o exercício livre e independente de mandato que lhes seja confiado, a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz, designadamente:

 a) O direito à proteção do segredo profissional;

b) O direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de atos conformes ao estatuto da profissão;

c) O direito à especial proteção das comunicações com o cliente e à preservação do sigilo da documentação relativa ao exercício da defesa;

d) O direito a regimes específicos de imposição de selos, arrolamentos e buscas em escritórios de advogados, bem como de apreensão de documentos”.

 

Se ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto o seu Constituinte, diretamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria Advocacia livre e independente, transformando-se os Advogados em testemunhas de defesa e desse modo se desvirtuando a sua função na administração da Justiça e no acesso ao direito.

 

Existem, em suma, segundo entendimento há muito perfilhado por este Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados[2] três grandes ordens de razões que estão na origem da consagração estatutária do dever (que é ao mesmo tempo direito) de o Advogado guardar segredo profissional sobre factos e documentos dos quais tome conhecimento no exercício da profissão:

  1. A indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre o Advogado e o cliente;
  2. O interesse público da função do Advogado enquanto agente ativo da administração da justiça;

 

  1. A garantia do papel do Advogado na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a paz social.

 

Sob a epígrafe “Segredo Profissional”, dispõe o artigo 92º do EOA, o seguinte:

“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o Bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.

5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.

8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever”.

 

Vejamos então.

 

No processo judicial em curso, é arguido o Exmo. Senhor Dr. (……), Ilustre Advogado.

 

O arguido encontra-se acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de fraude fiscal, previsto e punido, à data dos factos, pelo artigo 103.º, n.º 1, alínea a) do Regime Geral das Infrações Tributárias.

 

Sustenta a acusação, em síntese, o seguinte:

“5º

Nesse âmbito, o arguido, pelo menos no início do ano de 2010, formulou o propósito de se eximir ao pagamento dos valores efectivamente devidos daqueles impostos de IVA e de IRS decorrentes do exercício da sua actividade.

Propósito esse que executou nos exercícios de 2010 e 2011.

Na execução desse propósito, o arguido solicitou aos seus clientes que efectuassem, através de vale postal, os pagamentos dos honorários que cobrava pelos serviços que lhes prestava, essencialmente em matéria de insolvência.

 

Vales esses que trabalhadores do escritório, por ordem do arguido, recebiam em numerário nas agências do correio e cujos montantes entregavam sempre ao arguido.

(…) 10º

Depois, o arguido pagava aos colaboradores os actos em que estes tivesse tido intervenção, que emitiam o correspondente recibo.

As restantes quantas ficavam com o arguido.

12º

Sendo que o arguido apenas emitia aos clientes recibo correspondente a uma parte do valor que lhe cobrava a título de honorários e não da totalidade recebida de cada um, ou nem sequer lhes emitia qualquer recibo (fls. 770).

13º

Pelo que, quer em sede de IRS quer em sede de IVA, nos exercícios de 2010 e 2011, o arguido não inclui, nas respectivas declarações que apresentou, todos os valores que efectivamente cobrou aos seus clientes e dos quais recebeu através de vales postais.

(…) 37º

Alcançou, assim, o arguido, para si, de IVA e IRS uma vantagem patrimonial indevida no valor total global de 275.323,02 € (duzentos e setenta e cinco mil trezentos e vinte e três euros e dois cêntimos)”.

 

Em sede de inquérito, a Senhora Dra. (…..) foi ouvida na qualidade de testemunha, tendo prestado declarações, que aqui damos por integralmente reproduzidas.

 

Em sede de audiência de discussão e julgamento, a Senhora Dra. (…..) escusou-se a prestar depoimento quanto aos factos que constituem o objeto do processo-crime em curso.

 

Para tanto, invocou o segredo profissional com base, tanto quanto se alcança, em dois argumentos.

 

O primeiro por “ser colega de escritório do arguido na data dos factos” e, o segundo, “por ter conhecimento directo dos mesmos através do exercício das suas funções de advogada”, porque, segundo alegou, “teve intervenção directa nestes autos, na sua preparação, pese embora não tenha procuração junta aos autos”.

 

E foi, precisamente, este segundo argumento que nos suscitou algumas dúvidas e que motivou que este Conselho procedesse, nos termos legais, às devidas averiguações junto da Senhora Dra. (……), Ilustre Advogada.

 

Evidentemente, que o simples facto de a Senhora Dra. (……) ser, como invocou, “colega de escritório do arguido na data dos factos”, a sujeita ao dever de sigilo.

 

De facto, estipula o artigo 92.º, n.º 1, alínea c) do EOA, que “O Advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente: c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração”.

 

Da transcrita norma legal, infere-se que estão vinculados ao dever de sigilo profissional os Colegas de escritório do Advogado titular originário do sigilo que, por razão de proximidade profissional, têm acesso, direta ou indiretamente, a informação relacionada com o assunto (profissional) confiado a este.

 

E esta obrigação também se aplica, em toda a sua extensão, aos que partilham o escritório, isto é, o mero espaço físico, sem exercer a atividade em associação (sob a forma de sociedade ou não).

 

Ou seja, todos os Advogados que partilham o mesmo espaço físico para o exercício da advocacia devem considerar-se vinculados ao segredo uns dos outros naquilo que venha ao seu conhecimento. 

 

Assim, todo e qualquer facto que envolve a relação com o cliente - entendida esta em sentido lato-, está abrangido pelo dever de sigilo.

 

A natural e necessária relação de confiança que se estabelece entre Colegas que, para o exercício da sua atividade profissional, partilham o mesmo espaço físico (exerçam a atividade em associação ou não), mereceu especial preocupação por parte do legislador ao elencar essa mesma relação de confiança como fonte do dever de sigilo.

 

A não existir este contexto de normal e completa abertura entre Colegas, contexto este que, conforme já referimos, está tutelado pelo dever de sigilo, difícil se tornaria o exercício da Advocacia nos casos em existe partilha de espaço físico.

 

Mas, no caso vertente, outra razão há ainda para que se conclua que a Senhora Dra. (……), Il. Advogada, está vinculada ao dever de sigilo.

 

É que, no âmbito dos esclarecimentos que nos foram prestados, afirma a Senhora Dra. (……), Il. Advogada, que mantém com o ora arguido uma relação Advogada/Cliente, não só no processo no âmbito do qual o seu depoimento é agora pretendido, como também no âmbito de outros processos judiciais.

 

Neste conspecto, forçoso é concluir que dos factos objeto do processo-crime em curso, teve a Senhora Dra. (…..), Il. Advogada, (também) conhecimento na qualidade de Advogada do ora arguido e, portanto, no exercício da profissão e por causa desse mesmo exercício.

Pelo que, existindo uma relação de causalidade necessária entre o exercício dessas funções e o conhecimento desses mesmos factos, dúvidas não restam de que a Senhora Dra. (……), Il. Advogada, está, quanto a eles, obrigada a sigilo, já que a obrigação de segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao Advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, nos termos conjugados do disposto no artigo 92º, n.ºs 1 e 2 do EOA.

 

Traçado este quadro, dúvidas não temos de que a factualidade à qual o depoimento da Senhora Dra. (…..), Il. Advogada, é pretendido se mostra abrangida pelo dever de segredo profissional.

 

Recaindo sobre a Senhora Dra. (…….), Il. Advogada, a obrigação de guardar sigilo, esta deverá ser mantida enquanto, pelos meios legalmente previstos, não cessar.

 

E, para o efeito, a lei estabelece apenas dois mecanismos que se diferenciam, desde logo, a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

  • Dispensa de segredo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado detentor dessa obrigação ao Presidente do Conselho Regional competente, sendo concedida caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 92º., n.º 4 do EOA;
  • Incidente processual de quebra de sigilo profissional.

 

 

Lisboa, 17 de outubro de 2017.
A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

 

Tudo ponderado, entendemos, salvo melhor opinião, que a escusa para depor apresentada pela Senhora Dra. (….) Ilustre Advogada, é legítima, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135.º n.ºs 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 17 de outubro de 2017.
O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

 

[1] Também aplicável ao processo civil – vide Artigos 417º n.ºs 3 al. c) e 4 e 497º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil.

[2] Parecer do Conselho Regional de Lisboa n.º 2/2001, aprovado em sessão plenária no dia 13.03.2003, no qual foi relator o Dr José Ferreira de Almeida.  

Sandra Barroso

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