Pareceres do CRLisboa

Consulta 42/2017

Consulta n.º 42/2017


Requerente: (……)

 

Questão

 

Mediante comunicação rececionada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (……) de 2017 (entrada com o número de registo (…..)), a Exma. Senhora Juíza (…..) do Tribunal (……) veio solicitar ao Conselho Regional de Lisboa a emissão de parecer, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135.º, números 3 e 4 do Código de Processo Penal (doravante CPP).

 

O incidente de quebra do segredo profissional foi suscitado no âmbito do processo inquérito pendente na (…….), sob o n.º (……), quanto à Exma. Senhora Dra. (……), Ilustre Advogada. 

 

Subjacente o incidente processual de quebra do segredo profissional ora suscitado, está a factualidade que passamos a enunciar, ainda que de forma sintética:

  1. No processo de inquérito n.º (…..) investiga-se a prática de um crime de burla qualificada;
  2. No âmbito do mencionado processo de inquérito, foram recolhidos indícios de que, no dia (…..) de 2017, a denunciada (…….), aproveitando-se da circunstância de (……..) padecer de degradação neurológica que lhe provocava desorientação e incapacidade de reter novas memórias e de nela confiar, por desempenhar funções domésticas na sua residência há alguns anos, persuadiu-a a acompanhá-la ao Cartório Notarial de (……), e aí outorgar escritura pública de doação;
  3. Através da mencionada escritura, a ofendida doou à denunciada metade da fração autónoma melhor identificada nos autos;
  4. A denunciada terá dito à ofendida que ali se encontravam para que lhe doasse o imóvel de que era proprietária em (…..), em troca do que asseguraria os seus cuidados e do cunhado desta;
  5. Por forma a confirmar ou infirmar os indícios recolhidos, foi determinada a inquirição da Exma. Senhora Dra. (…..), Il. Advogada, que agendou a escritura pública e apresentou a documentação necessária para realização da mesma; 
  6. Chamada a depor, a Exma. Senhora Dra. (….), Il. Advogada, escusou-se a depor invocando sigilo profissional, ao abrigo da faculdade concedida pelo n.º 1 do artigo 135.º do CPP, invocando, para o efeito, “estar disso impedida por força do sigilo profissional a que está sujeita”;
  7. Considerada legítima a escusa, foi suscitado o incidente de quebra do segredo profissional junto do Tribunal (……);
  8. Recebido o incidente, veio a Exma. Senhora Juíza (…….) solicitar a pronúncia do Conselho Regional de Lisboa, nos termos e para efeitos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 135.º do CPP.

 

Entendimento do Conselho Regional de Lisboa

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental e verdadeiramente basilar que o dever de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.

Mas não só.

Trata-se de dever de primordial importância para o reconhecimento da plenitude do Estado do Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.

 

É que o Estado de Direito Democrático não só exige um poder judicial independente, como também pressupõe e postula o exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável.

 

Ora, condição essencial ao exercício da profissão é a absoluta confiança que deve presidir à relação Advogado/Cliente, fundada, naturalmente, no princípio do respeito pelo segredo profissional, a que a lei e a Constituição asseguram, com latitude, a adequada tutela.

 

Transcendendo o âmbito da relação Advogado/Cliente, o segredo profissional reveste-se ainda de uma dimensão de ordem pública, tal como resulta claro do regime legal constante do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor (aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro). E isto porque o sigilo tem outras dimensões e outros beneficiários para além do Cliente, devendo o Advogado ser, nas suas múltiplas relações sociais e profissionais, merecedor de confiança e isenção. Não apenas o Advogado individualmente considerado, como profissional liberal que é, mas como membro de uma classe profissional.

 

Por isso convirá realçar, de forma plenamente convicta, que se está na presença de um dever que constitui um princípio estruturante da Advocacia, assente não só na tutela dos interesses particulares que lhe possam estar subjacentes, mas adquirindo igualmente uma dimensão de ordem pública. Mais do que um dever do próprio Profissional, “ o sigilo é um dever de toda a classe, é condição da plena dignidade do Advogado bem como da Advocacia”[1].

 

Contudo, tal não significa que o dever de segredo seja absoluto.

 

Situações existem em que o levantamento do dever de guardar sigilo profissional se poderá, excecionalmente, justificar.

 

Assim, e para o efeito, estabelece a lei dois mecanismos que se diferenciam desde logo a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

 

 

  1. Dispensa do segredo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado adstrito ao dever de segredo ao Presidente do Conselho Regional competente, sendo concedida, caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 92.º, n.º 4 do EOA;
  2. Incidente processual de quebra de sigilo profissional, previsto no artigo 135.º do Código de Processo Penal[2], tendo legitimidade para o desencadear qualquer das partes em juízo ou a autoridade judiciária.

 

A decisão da quebra de sigilo é tomada, com audição prévia da Ordem dos Advogados, audição essa que recairá, inevitavelmente, sobre o preenchimento ou não preenchimento das condições de que depende a quebra do sigilo profissional, ou seja, sobre a existência de um interesse superior aos interesses que se visa proteger com o dever de segredo.

 

Assim, para que se possa concluir pela existência de um interesse preponderante, haverá que verificar-se, em concreto e nos termos em que o pedido de quebra se encontra fundado:

 

  1. se o depoimento é absolutamente necessário para a descoberta da verdade material;
  2. se o crime apresenta uma gravidade tal que implicará a quebra do dever de sigilo profissional, dever este que, conforme tem sido referido em diversa doutrina e jurisprudência, quer dos diversos órgãos da Ordem dos Advogados, quer dos tribunais, se reveste de interesse público (o que, desde logo, afastará a possibilidade de quebra em crimes de menor danosidade social);
  3. a necessidade da proteção dos bens jurídicos afetados (tendo em conta a importância destes).

 

Em particular, no que à absoluta necessidade do depoimento diz respeito, haverá, nos termos do Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional – Regulamento n.º 94/2006, de 12 de junho, DR, II Série, ainda em vigor por força do disposto no artigo 3.º, n.º 7 da lei preambular do Estatuto -, que verificar se o depoimento do Advogado com quebra do sigilo se reveste de imprescindibilidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser indispensável (ou seja, imprescindível, e não meramente útil) face ao objetivo de prova visado; de essencialidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser absolutamente determinante; e de exclusividade, pressupondo este requisito a inexistência de qualquer outro meio de prova que não o depoimento do obrigado ao sigilo.

 

Vejamos então.

 

Para que seja quebrado o dever de sigilo profissional, será sempre exigível uma situação de total excecionalidade e absoluta necessidade da audição do Advogado em causa sobre os factos de que tomou conhecimento no exercício da profissão.

 

De resto, não nos parece suficiente que o pedido de audição de um Advogado com quebra do segredo profissional se funde, única e exclusivamente, na sua essencialidade para a descoberta da verdade material e para a administração da justiça, no caso penal.

 

A fundamentação factual da total excecionalidade e absoluta necessidade da audição do Advogado é, a nosso ver, relevante para a pronúncia a emitir.

 

Ora, tal como se encontra recortado o pedido de audição da Ordem dos Advogados, nada nos permite concluir pela existência de um interesse preponderante ao dever de sigilo que leve ao sacrifício deste.

 

É que a tal situação excecional não se mostra minimamente fundamentada ou concretizada no incidente de quebra de sigilo profissional ora em apreço, desde logo, porque também desconhecemos se o depoimento da Exma. Senhora Dra. (…..) é, efetivamente, um meio de prova exclusivo dos factos aos quais o seu depoimento é pretendido. 

 

O recurso ao depoimento de Advogado para prova deve ser sempre encarado como um meio excecionalíssimo, sob pena de se banalizarem os deveres fundamentais desta nossa profissão.

 

O meio de prova sujeito a sigilo terá sempre de ser um meio de prova exclusivo, único meio de prova de determinado facto ou acervo de factos.

 

Não interessa, em matéria de sigilo, que o meio de prova sujeito a sigilo seja o melhor, o mais eficaz ou o meio de prova de obtenção mais simples. Terá de ser o único meio de prova da factualidade visada nos autos.

 

E, no caso concreto, nada nos permite concluir nesse sentido. Desconhecemos se existem meios de prova alternativos à quebra do segredo profissional que, concatenados, permitam ao Ministério Público confirmar ou infirmar os indícios até agora recolhidos em sede de inquérito.

 

Aliás, dos elementos colocados à nossa disposição, resulta indiciado que o depoimento da Ilustre Advogada não será um meio de prova exclusivo de alguns dos factos aos quais a sua inquirição é pretendida.

 

É que, por exemplo, sobre o concreto estado mental da ofendida aquando da outorga da escritura pública de doação poderá a notária, (……), depor.

 

Lisboa, 23 de outubro de 2017.
A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso

 

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

 

Nestes termos, entendemos que não estão reunidas as condições de que depende a audição da Exma. Senhora Dra. (……), Ilustre Advogada, com quebra do segredo profissional, devendo prevalecer os interesses que subjazem ao instituto jurídico-deontológico do dever de segredo profissional, em detrimento do interesse da administração da justiça penal.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 23 de outubro de 2017.
O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

 

[1] Bastonário Dr. Augusto Lopes Cardoso, in “Do segredo profissional na Advocacia”, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, p. 17.

[2] Também aplicável ao processo civil por remissão do artigo 417º n.º 4 do Código de Processo Civil.

 

Sandra Barroso

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