Pareceres do CRLisboa

Consulta 45/2017

Consulta n.º 45/2017


Requerente: (…….)

 

Questão

 

Através de comunicação escrita rececionada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (…..) (entrada com o número de registo (……)), o Exmo. Senhor Juiz (……) da (……..) veio solicitar ao Conselho Regional de Lisboa a emissão de parecer, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135.º, números 3 e 4 do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 417.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.  

 

O incidente de quebra do segredo profissional foi suscitado no âmbito do processo pendente no (…….), Juízo de (…..), sob o n.º (…..), quanto ao Exmo. Senhor Dr. (…..), Ilustre Advogado. 

 

O mencionado processo tem como causa de pedir os contratos de comodato juntos aos autos pelas Autoras, fundamentando a sua pretensão nas disposições do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro (cláusulas contratuais gerais), peticionando, a final, a exclusão das cláusulas 1ª e 7ª.

 

De facto, sustentam as Autoras que a Ré elaborou as minutas dos contratos de comodato, sem a sujeitar a qualquer discussão, acrescentando ainda que, as mesmas não plasmam o que havia sido previamente negociado, mormente, quanto à circunstância de ter sido acordado entre as partes que os comodatos se destinavam a vigorar até à conclusão da “Área de Reserva para Atividades Económicas”.  

 

Em sede de contestação, sustenta a Ré que, ao contrário do alegado pelas Autoras, os contratos de comodato que constituem a causa de pedir da ação não foram por si impostos unilateralmente, já que “a todos os AA. foram disponibilizadas cópias da minuta do contrato, a pedidos dos mesmos que, (…), pois pretendiam exibi-lo aos seus advogados, antes de assinarem”.

 

Acrescenta ainda a Ré que “O teor, fins e alcance do contrato de comodato, foi ampla e pormenorizadamente explicado aos AA, que disseram que aceitavam as condições propostas, que repita-se, tinham sido prévia e antecipadamente acordadas com a Câmara de (……..), entidade que assumiu a seu cargo, a construção e implementação da chamada “AREA” – área de reserva para equipamentos colectivos”.

 

Em sede contestação, foi o Exmo. Senhor Dr. (…..), Ilustre Advogado, arrolado como testemunha, por ser contratado da ora Ré.

 

Chamado a depor, o Exmo. Senhor Dr. (…..) escusou-se a depor por entender que “o seu depoimento, possa eventualmente recair sobre factos sujeitos a sigilo profissional”.

 

Considerada legítima a escusa, foi suscitado o incidente de quebra do segredo profissional junto do Tribunal (….).

 

Recebido o incidente, veio o Exmo. Senhor Juiz (…..) solicitar a pronúncia do Conselho Regional de Lisboa, nos termos e para efeitos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 417.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.  

 

Entendimento do Conselho Regional de Lisboa

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental e verdadeiramente basilar que o dever de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.

Mas não só.

 

Trata-se de dever de primordial importância para o reconhecimento da plenitude do Estado do Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.

 

É que o Estado de Direito Democrático não só exige um poder judicial independente, como também pressupõe e postula o exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável.

 

Ora, condição essencial ao exercício da profissão é a absoluta confiança que deve presidir à relação Advogado/Cliente, fundada, naturalmente, no princípio do respeito pelo segredo profissional, a que a lei e a Constituição asseguram, com latitude, a adequada tutela.

 

Transcendendo o âmbito da relação Advogado/Cliente, o segredo profissional reveste-se ainda de uma dimensão de ordem pública, tal como resulta claro do regime legal constante do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor (aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro). E isto porque o sigilo tem outras dimensões e outros beneficiários para além do Cliente, devendo o Advogado ser, nas suas múltiplas relações sociais e profissionais, merecedor de confiança e isenção. Não apenas o Advogado individualmente considerado, como profissional liberal que é, mas como membro de uma classe profissional.

 

Por isso convirá realçar, de forma plenamente convicta, que se está na presença de um dever que constitui um princípio estruturante da Advocacia, assente não só na tutela dos interesses particulares que lhe possam estar subjacentes, mas adquirindo igualmente uma dimensão de ordem pública. Mais do que um dever do próprio Profissional, “ o sigilo é um dever de toda a classe, é condição da plena dignidade do Advogado bem como da Advocacia”[1].

 

Contudo, tal não significa que o dever de segredo seja absoluto.

 

Situações existem em que o levantamento do dever de guardar sigilo profissional se poderá, excecionalmente, justificar.

 

Assim, e para o efeito, estabelece a lei dois mecanismos que se diferenciam desde logo a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

 

  1. Dispensa do segredo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado adstrito ao dever de segredo ao Presidente do Conselho Regional competente, sendo concedida, caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 92.º, n.º 4 do EOA;
  2. Incidente processual de quebra de sigilo profissional, previsto no artigo 135.º do Código de Processo Penal[2], tendo legitimidade para o desencadear qualquer das partes em juízo ou a autoridade judiciária.

 

Primeiro a lei processual penal e depois a lei processual civil consagram um verdadeiro entorse na regra cimeira da legitimidade exclusiva do detentor do segredo para requerer o seu levantamento.

 

Assim, dispõe o artigo 417.º n.º 1 do Código de Processo Civil que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade.

 

Contudo, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 3 da referida normal legal, considera-se legítima a recusa se a obediência importar violação do sigilo profissional.

 

E, quanto ao regime desta recusa, o artigo 417.º, n.º 4 limita-se a remeter para a norma do processo penal e para a sua disciplina específica.

 

A decisão da quebra de sigilo é tomada, com audição prévia da Ordem dos Advogados, audição essa que recairá, inevitavelmente, sobre o preenchimento ou não preenchimento das condições de que depende a quebra do sigilo profissional, ou seja, sobre a existência de um interesse superior aos interesses que se visa proteger com o dever de segredo.

 

Vejamos então o caso concreto.

 

Antes de mais, haverá que enfatizar que, no caso vertente, não suscita qualquer dúvida a sujeição ao dever de segredo profissional por parte do Exmo. Senhor Dr. (…….), permitindo-nos aqui repristinar os fundamentos invocados pelo Tribunal (……..) para sustentar a legitimidade da escusa.

 

Feito este pequeno parêntese, haverá que emitir a pronúncia solicitada, ou seja, verificar se subsistem, no caso concreto, valores superiores ao dever/direito de sigilo profissional. 

 

Para que se possa concluir pela existência de um interesse preponderante, haverá que verificar se, em concreto e nos termos em que o pedido de quebra se encontra fundado, o depoimento é absolutamente necessário para a descoberta da verdade material.

 

No que à absoluta necessidade do depoimento diz respeito, haverá, nos termos do Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional – Regulamento n.º 94/2006, de 12 de junho, DR, II Série, ainda em vigor por força do disposto no artigo 3.º, n.º 7 da lei preambular do Estatuto -, que verificar se o depoimento do Advogado com quebra do sigilo se reveste de imprescindibilidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser indispensável (ou seja, imprescindível, e não meramente útil) face ao objetivo de prova visado; de essencialidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser absolutamente determinante; e de exclusividade, pressupondo este requisito a inexistência de qualquer outro meio de prova que não o depoimento do obrigado ao sigilo.

 

 

Analisados os elementos fácticos trazidos ao conhecimento deste Conselho, concluímos, desde logo, que não são identificados de modo objetivo, concreto e exato qual o facto ou factos sobre os quais a desvinculação é pretendida.

 

E seria indispensável para a pronúncia a emitir que nos tivessem sido dados a conhecer os factos, concretos e determinados, a que a audição do Exmo. Senhor Dr. (……) é pretendida, pois só assim seria possível concluir, com o rigor que a matéria exige, pela (eventual) essencialidade e indispensabilidade da sua audição com quebra do segredo profissional.

 

E desconhecendo os factos aos quais o depoimento é pretendido, também não estamos em condições de aferir se o mesmo é, efetivamente, um meio de prova exclusivo dos factos que se pretendem ver provados.   

 

O recurso a um meio de prova sujeito ao dever de sigilo deve ser sempre encarado como um meio excecionalíssimo, sob pena de se banalizarem os deveres fundamentais desta nossa profissão.

 

O meio de prova sujeito a sigilo terá sempre de ser um meio de prova exclusivo, único meio de prova de determinado facto ou acervo de factos. Não interessa, em matéria de sigilo, que o meio de prova sujeito a sigilo seja o melhor, o mais eficaz ou o meio de prova de obtenção mais simples. Terá de ser o único meio de prova da factualidade visada nos autos.

E, no caso concreto, nada nos permite concluir nesse sentido. 

 

Por outro lado, tal como se encontra recortado o pedido de audição da Ordem dos Advogados, nada nos permite concluir pela existência de um interesse preponderante ao sigilo que leve ao sacrifício deste dever.

 

Para que seja quebrado o dever de sigilo profissional, será sempre exigível uma situação de total excecionalidade e absoluta necessidade da audição do Advogado vinculado ao dever de sigilo profissional.

 

O que não se manifesta de forma nenhuma na fundamentação – rectius, na escassez de fundamentação – em que assenta o incidente de quebra de sigilo profissional deduzido e ora sob análise.

 

Também nunca parece suficiente – não pode sê-lo -, que o pedido de audição com quebra de sigilo profissional se funde, única e exclusivamente, na sua essencialidade para a descoberta da verdade material.

 

A fundamentação factual da total excecionalidade e absoluta necessidade da audição do Exmo. Senhor Dr. (……) seria, a nosso ver, relevante para a pronúncia a emitir.

 

Lisboa, 23 de outubro de 2017.
A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

 

Nestes termos, entendemos que não estão reunidas as condições de que depende a audição do Exmo. Senhor Dr. (……), Ilustre Advogado, com quebra do segredo profissional, devendo prevalecer os interesses que subjazem ao instituto jurídico-deontológico do dever de segredo profissional, em detrimento do interesse da administração da justiça penal.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 23 de outubro de 2017.
O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

 

[1] Bastonário Dr. Augusto Lopes Cardoso, in “Do segredo profissional na Advocacia”, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, p. 17.

[2] Também aplicável ao processo civil por remissão do artigo 417º n.º 4 do Código de Processo Civil.

 

Sandra Barroso

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