Consulta 48/2017
CONSULTA N.º 48/2017
QUESTÃO
Mediante requerimento rececionado nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (……) de 2017 (entrada com o número de registo (…..)), o Senhor Advogado Dr. (…….), titular da cédula profissional n.º (……), veio solicitar a emissão de parecer, nos termos e com os fundamentos que passamos a enunciar.
Os factos objeto da presente consulta ocorrem no âmbito de processo de inventário, que corre termos sob o número (……), no Cartório Notarial de (…….).
Neste processo é cabeça-de-casal e interessada (…..), representada pela Ilustre Advogada, Dra. (…….) e, também interessado, (…….), representado pelo Senhor Advogado Consulente.
Em sede de conferência preparatória realizada (……..) de 2017, a mandatária da cabeça-de-casal e interessada, Ilustre Advogada, Dra. (…….), no uso da palavra, requereu, em nome de um terceiro, credor reclamante, que fosse reconhecido a este, um crédito sobre a herança por alegadas benfeitorias realizadas num prédio que integra o acervo patrimonial a partilhar.
Nessa ocasião, a Ilustre Mandatária, Dra. (…….), protestou juntar aos autos de inventário, procuração forense, o que fez, por requerimento, cuja cópia, o Senhor Advogado Consulente juntou a estes autos de consulta.
A questão que coloca o Senhor Advogado Consulente é a de saber se a Ilustre Advogada, Dra. (…..), pode, simultaneamente, representar os interesses do cabeça-de-casal e interessada, por um lado, e o credor reclamante, por outro.
Do mesmo modo, pretende que este Conselho Regional de Lisboa se pronuncie no sentido de esclarecer se, assumido o patrocínio relativamente a ambos – cabeça-de-casal e credor reclamante –, deve ou não, nesta fase, a Ilustre Advogada, Dra. (…….), renunciar ao mandato que os dois lhe conferiram.
ANÁLISE E ENQUADRAMENTO ESTATUÁRIO
“A Deontologia é o conjunto de regras ético-jurídicas pelas quais o advogado deve pautar o seu comportamento profissional e cívico. (...) O respeito pelas regras deontológicas e o imperativo da elevada consciência moral, individual e profissional, constitui timbre da advocacia.” – António Arnaut, Iniciação à Advocacia – História – Deontologia – Questões Práticas, p. 49 e 50, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996.
O Advogado, no exercício da sua profissão está vinculado ao cumprimento escrupuloso de um conjunto de deveres consignados no EOA e ainda àqueles que a lei, os usos, os costumes e as tradições profissionais lhe impõem – cf. artigo 88º, n.º 1 do EOA. O cumprimento escrupuloso e pontual de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.
O Título III do Estatuto trata da “Deontologia Profissional”, fixando, no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando, no Capítulo II, a questão das relações entre o Advogado e o cliente.
É neste último Capítulo e, mais especificamente no seu artigo 99º, que se encontra regulado o denominado “Conflito de Interesses”.
Aí estão plasmadas várias situações em que existe uma situação de incompatibilidade para o exercício do patrocínio.
A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente pelo teor do artigo 99º do EOA, resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e constitui expressa manifestação do princípio geral estatuído no artigo 89º do EOA, segundo o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.
Nesta medida, o regime legal estabelecido a propósito do conflito de interesses cumpre uma tripla função[1]:
- Defender a comunidade em geral, e os clientes de um qualquer Advogado em particular, de atuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes;
- Defender o próprio Advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de atuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes;
- Defender a própria profissão, a Advocacia, do anátema que sobre ela recairia na eventualidade de se generalizarem este tipo de situações.
Neste conspecto, preceitua a norma legal em apreço o seguinte:
“1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.
2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
5 - O Advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
6 - Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”
Vejamos então o caso concreto.
Consabidamente, o processo de inventário é um processo de jurisdição voluntária, o qual, aliás, sequer obriga a parte à constituição de mandatário, a menos que ocorram questões jurídicas a decidir no processo.
No caso concreto, duas partes, cabeça-de-casal e credor reclamante, decidiram fazer-se representar pela Ilustre Advogada, Dra. (……), sendo que esta, e independentemente da natureza do processo em que intervenha, e desde que o faça como Advogada, está obrigada ao cumprimento integral do EOA.
Também é comum e não nos oferece quaisquer dúvidas que, um mesmo mandatário possa representar, simultaneamente, diversos interessados num processo de inventário.
Mais do que a representação de diversas partes por um mesmo Advogado, o que a lei distingue como elemento de fronteira entre a possibilidade ou impossibilidade de o fazer, é o da existência ou suscetibilidade de existência de um conflito de interesses entre essas mesmas pessoas.
Reportando-nos agora ao caso em apreço, verificamos que a Ilustre Advogada, Dra. (……), assumiu o mandato relativamente a um interessado, que no caso coincide com a cabeça-de-casal, e a um credor reclamante.
O crédito sobre o acervo patrimonial comum do casal, a ser reconhecido, afetará o montante a receber pela cabeça-de-casal e pelo interessado, representado pelo Senhor Advogado Consulente.
Ora, daqui decorre que a Ilustre Advogada, Dra. (…….), está a representar, simultaneamente, interesses que são, entre si e, estritamente do ponto de vista do processo, conflituantes.
Isto porque, e em abstrato, por um lado, a cabeça-de-casal tem interesse em partilhar o acervo patrimonial, mantendo para si, os bens e ou dinheiro, que lhe caibam; por outro lado, o credor reclamante tem interesse em fazer sua uma quantia, a subtrair ao acervo patrimonial a partilhar, o que importará uma diminuição da parte que cabe à cabeça-de-casal.
Contudo, tal não é suficiente para que possamos, sem mais, concluir pela existência de conflito de interesses.
Haverá ainda que proceder à subsunção da factualidade atrás descrita à previsão do artigo 99º do EOA.
E, feita essa subsunção, diremos que, em concreto, duas hipóteses se colocam para efeitos de aferição de conflito de interesses tal como o Estatuto o configura.
Ou é inequívoco que, aquando da assunção do mandato, o crédito do credor reclamante foi reconhecido pela cabeça-de-casal, quer quanto ao facto de ser devido, quer quanto ao valor reclamado.
E, nesta hipótese, não existe qualquer conflito de interesses nos termos e para efeitos do normativo legal em causa.
Sublinhe-se que, pressuposto necessário do entendimento acabado de perfilhar é que, no momento da assunção do mandato do credor reclamante, a posição deste e da cabeça-de casal fossem, do ponto de vista do processo, coincidentes, ou seja, o direito de crédito do credor sobre a herança era reconhecido pela cabeça-de-casal.
A não ser assim, o novo mandato não deveria ter sido assumido, porque a tal impedia o disposto no artigo 99.º, n.º 3 do EOA.
Sem prejuízo, caso venha a existir algum conflito entre a posição da cabeça-de-casal e a do credor reclamante, somos do entendimento que a Ilustre Mandatária, Dra. (……), deverá, nos termos do disposto no artigo 99.º, n.º 4 do EOA, renunciar a ambos os mandatos.
Pois que, apenas esta solução garante que não será prejudicado qualquer cliente, nem traída a confiança de qualquer deles.
A montante, só assim não ficará beliscada a própria dignidade da profissão.
É este, s.m.o., o nosso entendimento quanto à questão que nos foi colocada.
Lisboa, 28 de setembro de 2018.
A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso
Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.
Notifique-se.
Lisboa, 28 de setembro de 2018.
O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins
[1] Cfr. Parecer do, então designado, Conselho Distrital de Lisboa n.º 6/02, aprovado em 16.10.2002, e no qual foi relator o Senhor Advogado Dr. João Espanha.
Sandra Barroso
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