Pareceres do CRLisboa

CONSULTA 50/2017

CONSULTA N.º 50/2017

 

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OBJETO

 

Mediante requerimento rececionado nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (……..) de 2017 (entrada com o número de registo (…..)), a Senhora Advogada Dra. (…….), titular da cédula profissional n.º (……), veio solicitar a emissão de parecer, nos termos e com os fundamentos que passamos a enunciar.

 

Em (……..) de 2011, foi mandatada por (…..), atualmente residente no estrangeiro, para requerer a sua insolvência pessoal, a qual veio a ser efetivamente decretada, encontrando-se este processo de insolvência em fase de liquidação dos bens que integram a massa insolvente.

 

Entretanto, o pai do insolvente já havia falecido, razão pela qual a Administradora da Insolvência determinou a partilha dos bens que integram a herança indivisa, a fim de os apreender para a massa insolvente.

 

É nesta circunstância, e porque como se disse anteriormente, o insolvente se encontra a residir no estrangeiro, que a Senhora Advogada Consulente foi contactada pelos familiares deste, a fim de proceder à partilha dos bens que constituem o acervo patrimonial da herança, mandato que a Senhora Advogada Consulente aceitou, correndo o processo de inventário no Cartório Notarial (…….), sob o n.º (……).

 

A questão que a Senhora Advogada Consulente coloca é a de saber se existe conflito de interesses na aceitação do mandato conferido para proceder à partilha do acervo patrimonial dos bens que integram a herança do falecido.

 

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COMPETÊNCIA CONSULTIVA DO CONSELHO REGIONAL DE LISBOA

 

Nos termos do disposto no artigo 54.º, n.º 1, alínea f) do EOA, compete aos Conselhos Regionais pronunciarem-se sobre questões de carácter profissional que se suscitem no âmbito da sua competência territorial.

 

A competência consultiva dos Conselhos Regionais está, assim, limitada pelo EOA às questões inerentemente estatutárias, isto é, as que decorrem dos princípios, regras, usos e praxes que regulam e orientam o exercício da profissão, maxime as que decorrem das normas do Estatuto e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido pela lei aos órgãos da Ordem dos Advogados.

 

A matéria colocada à apreciação deste Conselho Regional subsume-se, precisamente, a uma questão de carácter profissional nos termos descritos, pelo que haverá que proceder à emissão de Parecer quanto à questão que nos foi colocada.

 

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ANÁLISE E ENQUADRAMENTO ESTATUTÁRIO

 

“A Deontologia é o conjunto de regras ético-jurídicas pelas quais o advogado deve pautar o seu comportamento profissional e cívico. (...) O respeito pelas regras deontológicas e o imperativo da elevada consciência moral, individual e profissional, constitui timbre da advocacia.” – António Arnaut, Iniciação à Advocacia – História – Deontologia – Questões Práticas, p. 49 e 50, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996.

 

O Advogado, no exercício da sua profissão está vinculado ao cumprimento escrupuloso de um conjunto de deveres consignados no EOA e ainda àqueles que a lei, os usos, os costumes e as tradições profissionais lhe impõem – cf. artigo 88.º, n.º 1 do EOA.

 

O cumprimento escrupuloso e pontual de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.

 

O Título III do Estatuto trata da “Deontologia Profissional”, fixando, no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando, no Capítulo II, a questão das relações entre o Advogado e o cliente. 

 

É neste último Capítulo e, mais especificamente no seu artigo 99.º, que se encontra regulado o denominado “Conflito de Interesses”.

Aí estão plasmadas várias situações em que existe uma situação de incompatibilidade para o exercício do patrocínio.

A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente pelo teor do artigo 99.º do EOA, resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e constitui expressa manifestação do princípio geral estatuído no artigo 89.º do EOA, segundo o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.

Nesta medida, o regime legal estabelecido a propósito do conflito de interesses cumpre uma tripla função[1]:

  1. Defender a comunidade em geral, e os clientes de um qualquer Advogado em particular, de atuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes;
  2. Defender o próprio Advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de atuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes;
  3. Defender a própria profissão, a Advocacia, do anátema que sobre ela recairia na eventualidade de se generalizarem este tipo de situações.

 

Neste conspecto, preceitua a norma legal em apreço o seguinte:

“1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.

2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

5 - O Advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente. 

6 - Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.

 

Vejamos então o caso concreto. 

 

O caso em apreço reconduz-se à matéria do conflito de interesses.

Não obstante, e salvo melhor opinião, entendemos que a situação descrita não se subsume a nenhuma das previsões constantes do transcrito artigo 99.º do EOA, e isto, porquanto:

 

O escopo da previsão do artigo 99.º do EOA é o de evitar que um Advogado possa intervir em processo contra quem já foi ou é mandatário; representar interesses que são, entre si, conflituantes; ou violar o segredo profissional relativamente a um cliente, em virtude da aceitação de mandatos relativamente a outros clientes, quando estes e aquele, tenham uma relação que permitiria ao mandatário beneficiar uns e outros, ou algum deles, em detrimento de outro ou outros.

 

Neste caso concreto, o interesse do interessado insolvente, (…….), é o determinado pela Administradora de Insolvência, a saber, a partilha dos bens que lhe cabem na herança por morte do seu pai. Do mesmo modo, o interesse dos restantes interessados que a Senhora Advogada Consulente representa é o da partilha dos bens que lhe cabem, no acervo patrimonial que constitui a herança.

 

Segundo afirma a Senhora Advogada Consulente, todos os interessados estão por si representados no processo de inventário, com exceção do insolvente representado nos termos da lei pela Administradora de Insolvência, sendo que todos estão de acordo quanto à partilha de bens e não foram formuladas quaisquer reclamações, quanto à relação de bens apresentada, ou existe qualquer conflito relativamente à posição que cada um dos mandantes e interessados assume em concreto, presumindo-se, que esta posição em concreto, há-de dizer respeito à divisão concreta dos bens que preenchem cada um dos quinhões hereditários.

 

Assim, por ora, não se vislumbra qualquer situação que possa subsumir-se à previsão daquele invocado artigo 99.º do EOA.

 

Todavia, e caso venha a existir, no decurso do processo de inventário, conflito entre os interesses de algum ou alguns dos mandantes, a Senhora Advogada Consulente deverá cessar a representação dos interesses, relativamente a todos os mandantes, inclusivamente, o mandato que lhe foi conferido por (……) no âmbito do processo de insolvência, atento o facto de, neste processo em concreto, estar agora em causa a apreensão a benefício da massa insolvente dos bens que preenchem o quinhão hereditário do identificado insolvente.

 

É este, s.m.o., o nosso entendimento quanto à questão que nos foi colocada.

 

Lisboa, 5 de dezembro de 2017.
A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 5 de dezembro de 2017.
O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

 

 

 

[1] Cfr. Parecer do Conselho Distrital de Lisboa n.º 6/02, aprovado em 16.10.2002, e no qual foi relator o Senhor Advogado Dr. João Espanha.

Sandra Barroso

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