CONSULTA Nº 43/2008
Relator: Rui Souto
Requerente: ….
Discussão: sessão plenária de 29.10.2008
Aprovação: sessão plenária de 29.10.2008
Assunto:
- Conflito de Interesses
- Sigilo profissional
CONSULTA
Por requerimento que deu entrada nos serviços deste Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados no dia 3 de Outubro de 2008, com o nº …., veio a Sra Dra S solicitar a emissão de parecer sobre as seguintes questões:
- Desde há alguns anos que a Sra Advogada consulente representa o Sr. X
- Durante o ano de 2008, o Sr X, no decurso da sua actividade profissional de empresário em nome individual de venda directa, recrutou a Sra Y que, por sua conta e risco, angariava clientes, efectuava a demonstração dos produtos e recolhia toda a documentação necessária à concessão do crédito financeiro inerente e a entregava ao Sr X.
- No decurso do corrente ano, a Sra Y recorreu aos serviços da Sra Advogada consulente no sentido de mediar um litígio extra-judicial com o seu senhorio e, posteriormente, solicitando que accionasse criminalmente terceiros por alegado crime de difamação contra si perpetrado. Ambas estas situações seriam totalmente alheias aos assuntos do Sr X em que terá a Sra Advogada consulente intervindo.
- Numa das consultas havidas, a Sra Y entregou documentação à Sra Advogada consulente, apenas não tendo esta até à data nada feito, do ponto de vista processual quanto ao eventual crime de difamação de que foi alvo a Sra Y, por se encontrar a aguardar que o anterior mandatário da mesma seja ressarcido dos seus honorários.
- No início de Setembro, a Sra Advogada consulente tomou contacto, por via dos serviços prestados ao Sr X, de problemas com contratos relacionados com a actividade deste, em que a Sra Y intervinha, tendo-se concluido que alguns dos documentos e assinaturas apostas em documentos teriam sido falsificadas pela Sra Y ou por alguém a seu auxílio.
Por outro lado,
- Alguns dos clientes finais do Sr X terão já apresentado queixas crime por burla e falsificação, sendo intenção do mesmo também accionar a Sra Y;
Ora,
- A Sra Advogada consulente verificou que alguns dos documentos que se encontram na sua posse, e que lhe foram entregues pela Sra Y, poderão constituir elementos importantes para a investigação
Pergunta, pois a Sra Advogada consulente se:
- É absoluta a impossibilidade de representar o sr. X contra a Sra Y, num processo distinto daquele em que exerceu funções em representação da Sra Y?
- a que título poderá fazer chegar á posse dos órgãos de polícia criminal competentes da documentação que lhe foi entregue pela sra Y, tendo em conta que a mesma poderá ser de extrema utilidade, importância e relevância para a investigação?
PARECER
Dispõe a alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (E.O.A.), que cabe a cada um dos Conselhos Distritais da Ordem dos Advogados, no âmbito da sua competência territorial, “pronunciar-se sobre as questões de carácter profissional”.
Tem sido entendido pela jurisprudência da Ordem dos Advogados que estas “questões de carácter profissional” serão aquelas de natureza intrinsecamente estatutárias, ou seja, que decorrem dos princípios, regras, usos e praxes que comandam ou orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente os que relevam das normas do E.O.A., do regime jurídico das sociedades de Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei aos órgãos da Ordem.
A matéria colocada à apreciação deste Conselho Distrital subsume-se, precisamente, a uma “questão de carácter profissional” nos termos descritos. Pelo que há que proceder à emissão de parecer sobre as questões colocadas. Sem prejuízo deverá realçar-se que a análise a empreender haverá que, necessariamente, cingir-se aos factos trazidos ao conhecimento deste Conselho Distrital, de acordo com a forma como foram transmitidos (isto é, sem qualquer referência a pessoas, processos ou entidades concretas) e dentro dos limites das questões colocadas, sem que isso corresponda à tomada de posição ou apreciação de mérito deste órgão da Ordem sobre qualquer situação concreta.
O primeiro bloco de análise do presente parecer, tal qual é colocada a primeira questão pela Sra Advogada consulente, incide necessariamente sobre o instituto jurídico-deontológico do conflito de interesses.
É sabido que a matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente pelo teor do art. 94º do EOA, resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e, nesta medida, a referida norma cumpre uma tripla função:
- Defender a comunidade em geral, e os clientes de um qualquer outro Advogado em particular, de actuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes;
- Defender o Advogado da possibilidade de sobre ele recair a suspeita de actuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos interesses e direitos dos seus clientes;
- Defender a própria profissão do anátema que sobre ela recairia na eventualidade de se generalizarem o género de situações a que acabámos de fezer alusão .
Decorre, pois assim, da norma em apreço que:
“1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.
2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
5 - O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
6 - Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”
Em bom rigor, a resposta à primeira questão não passa pelo nº1 desta norma, a qual destina-se a evitar situações de patrocínio, por parte de um Advogado, em questões, relativamente às quais:
- Já tenha intervindo em qualquer outra qualidade;
- Sejam conexas, do ponto de vista dos direitos a defender pelo Advogado e realidades que lhes estão materialmente subjacentes, com outras em que represente, ou tenha representado a parte contrária.
É que, em boa verdade, tal como se verifica descrita a situação, o que se passa é algo de diferente: A Sra Advogada consulente prestou serviços à Sra Y (e ainda se pode dizer que prestará, já que a relação profissional não se manifesta quebrada) em assuntos, ao que se presume, independentes e autónomos dos serviços que pretende prestar em representação do Sr X (relacionados com a queixa crime a apresentar contra aquela primeira).
Não existe, pois, identidade material de assuntos confiados à Sra Advogada consulente, nem conexão dos mesmos no sentido que tivemos oportunidade de relevar.
A chave para encontrar-se uma solução à primeira dúvida colocada e, por arrastamento, como veremos, também à segunda, reside, a nosso ver, no nº2, bem como no nº 4 do art. 94º.
O nº2 da identificada norma estatutária tem um âmbito definido: trata-se de evitar que em causas distintas, isto é, sem qualquer conexão entre si, o Advogado seja, simultaneamente a favor de um constituinte numa delas e contra ele noutra. O conceito de “causa” não diz respeito, convirá precisar, a processos judiciais, devendo ser entendido como abrangendo qualquer assunto pendente confiado ao Advogado, relacionado ou não com litígios judiciais. Aliás, seria a todos os níveis incompreensível, face ao elemento teleológico do regime estatuído no art. 94º, que se interpretasse de forma restritiva o preceito limitando-se o conceito de “causas pendentes” a “processos judiciais pendentes”.
A ser assim, pouca margem de manobra nos resta a não ser considerar que a Sra Advogada consulente está impedida de aceitar o mandato do Sr X contra a Sr Y, uma vez que não se demonstra que a relação profissional com a Sra Y esteja quebrada ou terminada. Ao invés, parece resultar da exposição remetida a este Conselho Distrital que a Sra Advogada consulente terá aceite a representação da Sra Y e ficado à espera que a sua cliente liquidasses os honorários em dívida em relação ao seu antigo mandatário para que, então, pudesse accionar criminalmente os visados pela queixa crime a dar entrada junto das entidades competentes .
Sendo, pois, actualmente mandatária da Sra Y, não poderá, por consequência do regime legal vigente e que decorre do nº2 do art. 94º, aceitar a prestação de serviços em favor do Sr X contra aquela, que é também sua cliente.
Sem prejuízo, ainda que se considerasse a relação profissional entre a Sra Advogada consulente e a Sra Y, agora ou no futuro, como quebrada, a verdade é que outros dispositivos legais impedem a assunção do patrocínio no que tange ao processo crime a ser instaurado contra aquela pelo Sr X. A eles dedicaremos de seguida a nossa atenção.
Pode-se ler no nº4 que “se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.“
Ora, nos termos do nº1 do art. 87º do EOA, “O Advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
- a factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
(…)”
Este dever, que constitui um dos pilares em que se alicerça a própria profissão, existe quer o serviço solicitado ou cometido ao Advogado “envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o Advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço (…)” – nº2 do art. 87.
Mais se dispõe no nº3 do mesmo preceito legal que “o segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.”
Pelos factos transmitidos a este Conselho, a Sra Y terá entregue à Sra Advogada consulente uma série de documentação que esta entende importante para a investigação no processo crime a ser despoletado pelo Sr X, bem como para as queixas-crime por burla e falsificação já desencadeados por clientes do Sr X.
Como é evidente, a Sra Advogada consulente não pode, devido à sua sujeição ao dever de sigilo profissional, dar a conhecer a qualquer terceiro o teor da documentação que detém na sua posse e que lhe foi entregue pela Sra Y.
Mas para além disso, face ao risco de violação de segredo profissional e de diminuição de independência da Sra Advogada consulente na questão relacionada com a queixa crime a apresentar pelo Sr X, tendo em conta que conhece, por serviços prestados à Sra Y, documentação desta que entender ser importante ao mandato relacionado com o processo crime, estará totalmente impedida de aceitar o mandato do Sr X nesse processo, como ainda deverá deixar de patrocinar a Sra Y, em qualquer situação minimamente relacionada com essa documentação.
Assim sendo, estamos em condições de serem traçadas as necessárias CONCLUSÕES:
1.
Nos termos do art. 84º, do Estatuto da Ordem dos Advogados, o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros.”
2.
Mais dispõe o art. 94º, nº2 que o “O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.”
Assim,
3.
Estará a Sra Advogada consulente impedida de aceitar mandato conferido pelo seu cliente Sr X para efeitos de instauração de processo criminal contra a Sra Y, tendo em conta que de acordo com os factos transmitidos a este Conselho não se nos apraz concluir que não seja a Sra Y já sua cliente.
4.
Mesmo que assim não se entendesse, ou se verificasse terminada a relação profissional que a liga à Sra Advogada consulente, está esta impedida de aceitar mandato do Sr X contra a Sra Y, no âmbito de processo criminal a ser instaurado por força do nº4 do art. 94º.
É que,
5.
Tendo a Sra Advogada consulente tido conhecimento de documentos relacionados com matéria crime quanto à qual o Sr X pretende accionar criminalmente a Sra Y, documentos esses que lhe foram entregues pela Sra Y, e por essa razão, sujeitos ao dever de guardar sigilo profissional, a aceitação de mandato do Sr X levaria à criação de uma intolerável situação de risco de violação do segredo profissional bem como de diminuição da sua independência na condução do assunto.
6.
Em virtude do disposto no nº4 do art. 94º, está ainda a Sra Advogada consulente impedida de prestar qualquer serviço à Sra Y relacionada com a documentação em causa e que seja, de alguma forma, conexa com a matéria crime de que tem conhecimento no âmbito dos serviços prestados ao Sr X.
Finalmente,
7.
Tendo em conta que se trata de documentação entregue pela Sra Y para efeitos de prestação de serviços de Advocacia por parte da Sra Advogada consulente, está ainda esta obrigada ao dever de guardar sigilo profissional, nos termos do art. 87º, nº1, al. a) e nº3 do EOA, não podendo dá-los a conhecer a quaisquer terceiros.
Lisboa,
Rui Souto
Consulta deste Conselho Distrital de Lisboa nº 12/08, na qual foi relator o Dr Jaime Medeiros, aprovada em 19 de Maio de 2008.
Cfr Consulta do Conselho Distrital de Lisboa nº 6/02, na qual foi relator o Dr João Espanha, aprovada em 16.10.2002
Realce-se, a este propósito, que as diligências previstas no art. 107º, nº2 do EOA, empreendidas por Advogado junto dos respectivos clientes para que sejam pagos os honorários e demais quantias devidas ao anterior mandatário, antes de iniciar a sua actuação, não se podem confundir com a aceitação, que lhe é prévia, do mandato.
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