Consulta n.º 42/2008
Requerente: Serviço do Apoio Judiciário
Aprovação: 29 de Outubro de 2008
Questão: Considerando a sucessão de leis em matéria de Acesso ao Direito e aos Tribunais, qual o regime legal aplicável aos processos de nomeação de patrono pendentes no Conselho Distrital de Lisboa?
1 &
Dos diplomas legais
em matéria de Acesso ao Direito e aos Tribunais
No ordenamento jurídico português, foram já várias as leis a estatuir sobre assistência judiciária.
A primeira lei sobre a matéria foi publicada em 31 de Julho de 1889, sob proposta de José Maria de Alpoim (Ministro da Justiça nos governos de José Luciano de Castro).
Mais tarde, o regime da assistência judiciária consagrado naquela lei passou a integrar o Estatuto Judiciário, aprovado pelo Decreto n.º 13809, de 22 de Junho de 1927, modificado pelo Decreto n.º 15334, de 12 de Abril de 1928.
Em 23 de Fevereiro de 1944, foi, pela primeira vez em Portugal, publicado um diploma legal, que versou exclusivamente a matéria relativa à assistência judiciária – D.L. n.º 33548, de 23 de Fevereiro de 1944.
Mais tarde, um novo regime de assistência judiciária foi estatuído através da Lei n.º 7/70, de 9 de Junho – regulamentada pelo Decreto n.º 562/70, de 18 de Novembro e pelo Decreto-Lei n.º 44/77, de 2 de Fevereiro.
Posteriormente, a Lei n.º 7/70, de 9 de Junho e o Decreto n.º 562/70, de 18 de Novembro foram revogados pelo Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro.
A grande alteração ao sistema do apoio judiciário surge com a publicação da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro.
Em 27 de Maio de 2004, foi aprovada na Assembleia da República uma nova lei do apoio judiciário que introduziu na ordem jurídica uma profunda modificação do regime de Acesso ao Direito e os Tribunais e do modelo de gestão do apoio judiciário – Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho.
Actualmente, está em vigor a Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto de 2007 e regulamentada pela Portaria n.º 10/2007, de 3 de Janeiro, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 210/2008, de 29 de Fevereiro.
2 &
Da questão decidenda
Esta sucessão de leis no tempo em matéria de acesso ao direito e aos tribunais faz com que estejam pendentes no Conselho Distrital de Lisboa processos de nomeação de patrono com origem em três regimes legais distintos, a saber:
- O Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro,
- A Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho e
- A Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto de 2007.
Face a esta realidade, uma questão se coloca desde logo, a saber:
- não obstante o regime legal de origem de cada um dos processos de nomeação pendentes no Conselho Distrital de Lisboa, é legalmente possível submeter todos os processos de nomeação pendentes a um único regime legal – o da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto de 2007 e respectiva regulamentação?
Delimitado que está o âmbito da presente consulta, passaremos de seguida à sua análise.
3 &
Do enquadramento jurídico da questão
É inquestionável que as normas jurídicas não são imortais, mas sujeitas a modificarem-se e a extinguirem-se.
Como na Natureza, assim no mundo jurídico não há imobilidade, mas transformação: o direito renova-se com os tempos.
Partindo deste pressuposto, o n.º 1 do artigo 7º do Código Civil alude a duas causas possíveis de cessação da vigência da lei: a caducidade e a revogação.
Por seu turno, o n.º 2 da referida norma legal prevê três formas de revogação: a revogação expressa (a nova lei designa e declara revogada uma lei anterior), a revogação tácita (não há revogação expressa, mas normas da lei posterior são incompatíveis com as da lei anterior) e a revogação de sistema (não há revogação expressa nem tácita mas o legislador determina que o novo texto seja o único a regulamentar certa matéria).
Em matéria de aplicação das leis no tempo, a regra básica é estabelecida no artigo 12º do C.C., cujo n.º 1 reafirma o princípio da não retroactividade – a lei (nova) só dispõe para o futuro – acrescentando, porém, que, mesmo na hipótese de à lei se atribuir eficácia retroactiva, se presume que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
É tarefa do direito transitório – expressão adoptada para designar aquele conjunto de princípios e de regras cuja função é delimitar entre si os âmbitos de aplicação temporal de cada lei – coordenar a aplicação de dois sistemas jurídicos que se sucedem no tempo. Desta sua missão, que o obriga a optar pela lei antiga ou pela nova lei, há-de ele desempenhar-se com base na ponderação de certos interesses que se contrapõem, apontando, um, para a aplicação daquela lei e, outro ou outros, para a aplicação desta.
Tendo como ponto de partida estes conceitos gerais, importa verificar o que nos dizem cada um dos regimes de origem dos processos de nomeação pendentes no Conselho Distrital de Lisboa.
Vejamos então.
- Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Setembro.
Estipulava o artigo 57º do referido diploma legal que “são revogados a Lei n.º 7/70, de 9 de Junho, e o Decreto-lei n.º 562/70, de 18 de Novembro”.
Estatuía ainda o decreto-lei n.º 387-B/87, de 29 de Setembro no seu artigo 58º que o mesmo entraria em vigor 30 dias após a publicação do decreto-lei de regulamentação do sistema de apoio judiciário e do seu regime financeiro – decreto-lei n.º 391/88, que veio a ser publicado em 26 de Outubro de 1988.
Ou seja, a partir da referida data cessou a vigência da Lei n.º 7/70, de 9 de Junho, tendo esta sido substituída por uma nova lei em matéria de acesso ao direito e aos tribunais: a saber, o Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Setembro.
- Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro
As normas revogatórias inseridas na Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, constam do artigo 56º.
E, estabelece o n.º 1 que “São revogados o Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro (…)”.
Em matéria de aplicação no tempo e de direito a constituir, diz-nos o artigo 57º da lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro que:
“1. As alterações introduzidas pela presente lei aplicam-se apenas aos pedidos de apoio judiciário que sejam formulados após o dia 1 de Janeiro de 2001.
2. Aos processos de apoio judiciário iniciados até 31 de Dezembro de 2000 é aplicável o regime legal anterior.”
E que conclusões podemos daqui extrair?
A nova lei revoga expressamente o Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro.
É de aplicação imediata após a data da sua entrada em vigor – 1 de Janeiro de 2001.
Ficam apenas fora do seu âmbito de aplicação, os processos de apoio judiciário iniciados até 31 de Dezembro de 2000 (inclusive), o que se alcança se atendermos às diferenças de procedimentos plasmadas em cada um dos regimes legais, nomeadamente, em matéria de competência para a apreciação e decisão do pedido de protecção jurídica.
- Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho
A norma revogatória inserida na Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, consta do artigo 50º, que estatui o seguinte: “É revogada a Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro”.
Em matéria de regime/direito transitório, estatui o artigo 51º que:
“1- As alterações introduzidas pela presente lei aplicam-se apenas aos pedidos de apoio judiciário que sejam formulados após o dia 1 de Setembro de 2004.
2 – Aos processos de apoio judiciário iniciados até à entrada em vigor da presente lei é aplicável o regime legal anterior”.
Ou seja:
A Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho revoga expressamente a Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro e é de aplicação imediata após a data da sua entrada em vigor – 1 de Setembro de 2004.
A aplicação da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro apenas está ressalvada nos casos a que alude o normativo em causa, isto é, aos pedidos de apoio judiciário iniciados até 31 de Agosto de 2004 (inclusive).
Em 28 de Agosto de 2008, foi publicada a Lei n.º 47/2007, que introduziu na ordem jurídica portuguesa a primeira alteração à Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho.
Em matéria de direito transitório estatui o artigo 6º da Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto que “as alterações introduzidas pela presente lei aplicam-se apenas aos pedidos de protecção jurídica apresentados após a sua entrada em vigor”.
E, a referida Lei entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2008 – cf. artigo 8º.
A Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, na redacção dada pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto foi regulamentada pela Portaria n.º 10/2008, de 3 de Janeiro, alterada pela Portaria n.º 210/2008, de 29 de Fevereiro.
Chegados a este ponto do nosso raciocínio, fácil será concluir que o cerne da questão residirá em sabermos o que o legislador quis dizer quando em matéria de direito transitório utiliza a expressão pedidos/processos de apoio judiciário.
Isto é:
O que estava no espírito do legislador quando utilizou esta terminologia? Pretendeu o legislador, unica e exclusivamente, abranger os procedimentos do apoio judiciário da competência dos órgãos de segurança social ou, pelo contrário, também os do Conselho Distrital de Lisboa?
Antes da entrar na análise propriamente dita da questão, deixaremos a seguinte nota.
O sistema de acesso ao direito e aos tribunais, tal como se encontra delineado nos diplomas em apreço, comporta a dupla vertente da informação jurídica e da protecção jurídica.
A vertente da protecção jurídica compreende, por sua vez, as modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário.
O apoio judiciário em sentido amplo abrange a modalidade de assistência judiciária e a de patrocínio judiciário.
Ora, partindo deste pressuposto, e se atendermos ao espírito da lei e ao seu elemento sistemático, facilmente chegaremos à conclusão de que o legislador ao utilizar a expressão “pedidos/processos de apoio judiciário” pretendeu expressar mais do que realmente expressou.
Entendemos por isso que a expressão “pedidos/processos de apoio judiciário” deve ser interpretada extensivamente como querendo significar pedidos de protecção jurídica.
Pois que o que está aqui em causa são os pedidos de protecção jurídica em termos gerais, e não apenas os que tenham sido requeridos na modalidade de apoio judiciário.
Entendimento, aliás, agora reforçado pela redacção dada ao artigo 6º da Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, que estatui que as “alterações introduzidas pela presente lei aplicam-se apenas aos pedidos de protecção jurídica apresentados após a sua entrada em vigor”.
Concluída que está esta breve nota, vejamos agora o que se deve então entender por pedidos de protecção jurídica?
Tenha-se em conta que o procedimento tendente à concretização do pedido apresentado pelo utente da protecção jurídica passa, em regra, por três fases consubstanciadas (1) no pedido (o procedimento administrativo inicia-se a requerimento do interessado), (2) na decisão propriamente dita (da competência do órgão administrativo decisor – os serviços de segurança social da área de residência ou sede do requerente) e, finalmente, (3) na nomeação de advogado, enquanto acto de execução da decisão de deferimento do apoio judiciário na modalidade de patrocínio judiciário.
E, o pedido apresentado pelo utente da protecção jurídica só chegará à fase da nomeação de advogado, e, portanto, só envolverá a intervenção do Conselho Distrital de Lisboa, caso o pedido de protecção jurídica tenha sido requerido e concedido na modalidade patrocínio judiciário.
Neste caso, ao acto de nomeação do Conselho Distrital seguir-se-ão os demais incidentes decorrentes daquele acto, nomeadamente, pedidos de escusa de patrocínio oficioso, pedidos de dispensa de patrocínio, pedidos de prorrogação de prazo para efeitos de propositura da acção, pedidos de substituição de patrono, entre outros.
Se, pelo contrário, não houver intervenção do Conselho Distrital de Lisboa, traduzida, ab initio, no acto de nomeação de advogado, os procedimentos tendentes à concretização do benefício concedido esgotam-se nos procedimentos da competência dos órgãos da Segurança Social, a quem a lei atribui competência para a instrução, apreciação e decisão dos pedidos de protecção jurídica, isto é, compete-lhes aferir se determinada pessoa está em situação de insuficiência económica para efeitos de concessão do benefício da protecção jurídica.
E, neste caso, é evidente que a expressão pedidos de protecção jurídica abrange, unica e exclusivamente, os procedimentos do apoio judiciário da competência dos órgãos de Segurança Social, ou seja, a sucessão ordenada de actos e formalidades tendentes à formação e manifestação da vontade dos serviços de segurança social quanto ao deferimento ou indeferimento da pretensão do particular que pretende beneficiar de protecção jurídica.
E quando o pedido de protecção jurídica envolva a nomeação de advogado, a expressão pedidos de protecção jurídica utilizada em matéria de direito transitório, continuará apenas e tão só a abranger os procedimentos do apoio judiciário da competência da segurança social ou passará a abranger também os procedimentos da competência do C.D.L?
Para responder a esta pergunta importará antes de mais determinar qual foi então o propósito que o legislador teve em vista com a previsão de um regime transitório.
Parece-nos que foi aqui preocupação do legislador garantir que os pedidos de protecção jurídica fossem sempre instruídos, apreciados e decididos de acordo com a lei em vigor à data em se iniciou o procedimento administrativo junto dos serviços de segurança social, ou seja, à data em que o pedido foi apresentado pelo utente da protecção jurídica.
Por outras palavras, foi preocupação do legislador garantir que os factos relativos à insuficiência económica fossem apreciados de acordo com a lei em vigor à data da apresentação do pedido nos serviços de segurança social.
A opção do legislador pela lei antiga neste momento justifica-se, a nosso ver, se tivermos em linha de conta o princípio da estabilidade da ordem jurídica.
Há um interesse dos indivíduos na estabilidade da ordem jurídica, o que lhes permitirá a organização dos seus planos de vida e lhes evitará o mais possível a frustração das suas expectativas fundadas.
Isto tem ainda como consequência directa que o alcance do benefício do apoio judiciário concedido seja sempre determinado à luz do regime em vigor à data da concessão.
Em suma, as normas da nova lei são sempre de aplicação imediata aos pedidos apresentados após a sua entrada em vigor e isto, independentemente dos factos relativos à insuficiência económica haverem ocorrido durante a vigência da lei anterior.
E, todas as razões atrás enunciadas se aplicam, mutatis mutandi, a nosso ver, aos casos em que a protecção jurídica tenha sido requerida e concedida na modalidade de nomeação do patrono.
Também, nestes casos, a expressão pedidos/processos de apoio judiciário continuará a abranger somente os procedimentos da competência da segurança social e não os que são da competência Conselho Distrital de Lisboa.
Não faria sentido que assim não fosse, até por uma questão de unidade e homogeneidade do ordenamento jurídico e de igualdade jurídica.
Não esqueçamos que o direito de acesso ao direito e aos tribunais é elemento integrante do princípio material da igualdade.
Este princípio assume relevância, nomeadamente, na forma de igualdade formal ou igualdade perante a lei.
De facto, de acordo com o plasmado na 2ª parte do n.º 1 do artigo 13º da CRP, todos os cidadãos são iguais perante a lei, implicando tal princípio que a apreciação da situação de insuficiência económica do utente da protecção jurídica seja feita de acordo com determinados elementos objectivos – o chamado critério da insuficiência económica.
A existência de um conceito de insuficiência económica envolvido de objectividade permite obviar à heterogeneidade de critérios na apreciação dos pedidos de protecção jurídica, o que permite, na prática, que os diversos centros de decisão de pedidos de protecção jurídica procedam aproximadamente da mesma forma na respectiva apreciação, evitando-se que similares situações de insuficiência económica justifiquem decisões de sentido contrário.
E foi à luz deste critério que, a nosso ver, o legislador salvaguardou a aplicação da lei antiga aos requerimentos já apresentados nos centros de segurança social aquando da entrada em vigor da nova lei.
Quanto ao demais e, nomeadamente, quanto ao acto de nomeação de advogado e os demais incidentes que lhe são inerentes, as normas da lei nova são de aplicação imediata.
Concluindo,
Diremos que todos os processos de nomeação de patrono pendentes no Conselho Distrital de Lisboa se regem, doravante, pelo disposto pela Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto e regulamentada pela Portaria n.º 10/2007, de 3 de Janeiro, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 210/2008, de 29 de Fevereiro.
Lisboa, 1 de Setembro de 2008
Sandra Barroso
Assessora Jurídica do C.D.L. |