Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 5/2009

Consulta n.º 5/2009
Processo de Inscrição de Advogado Estagiário n....
Requerente: .....

&
Dos factos

O Senhor Advogado Estagiário, Dr. ...., titular da cédula profissional n.º ...., encontra-se a frequentar a fase de formação complementar do estágio de advocacia.

Pretende exercer as funções de presidente da direcção duma associação privada sem fins lucrativos, a denominar “Centro de Arbitragem em Matéria Administrativa”, que terá por objecto a resolução de litígios emergentes de contratos e de relações jurídicas de emprego público, através de informação, mediação, conciliação ou arbitragem, razão pela qual vem solicitar a pronúncia do Conselho Distrital de Lisboa quanto à existência de eventual incompatibilidade/impedimento entre a assunção destas funções e a frequência do estágio/exercício da advocacia.

Dos elementos juntos ao processo de inscrição decorre o seguinte:
Nos termos do artigo 2º dos Estatutos da Associação denominada CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa (doravante, Centro), a mesma é uma pessoa colectiva de direito privado, sem fins lucrativos, constituída por tempo indeterminado.

 

O Centro tem por objecto a resolução de litígios emergentes de contratos e de relações jurídicas de emprego público, através de informação, mediação, conciliação ou arbitragem, nos termos definidos no seu regulamento e que por lei especial não estejam submetidos exclusivamente a tribunal judicial ou a arbitragem necessária – cf. n.º 2 do artigo 3º.

O Centro tem vários órgãos, de entre os quais, a Direcção. A Direcção é constituída pelo presidente e dois vogais.

O presidente da direcção é nomeado pelo conselho de representantes, após pronúncia não vinculativa da assembleia-geral.
O presidente da direcção tem as seguintes competências:
a) “Executar as deliberações e recomendações da assembleia-geral e da direcção;
b) Coordenar e superintender na direcção de todos os serviços da associação;
c) Assegurar o bom funcionamento da associação de acordo com os objectivos estratégicos delineados pelo conselho de representantes;
d) Recrutar o pessoal necessário ao desenvolvimento da sua actividade que lhe ficará subordinado, ouvido o conselho de representantes;
e) Propor à direcção a entrada de novos associados;
f) Propor à direcção as alterações ao regulamento da associação e ao regulamento de encargos processuais;
g) Propor à direcção a composição da lista de árbitros e mediadores;
h) Exercer as demais competências previstas no regulamento da associação”.

 

Estatui o n.º 4 do artigo 7º dos Estatutos do Centro que, o cargo de presidente da direcção é, nos termos do artigo 244º e ss. do Código do Trabalho, exercido em comissão de serviço por um período de três anos, renovável.

&
Da questão suscitada à luz do E.O.A.

Conexionada com a independência e dignidade da advocacia está a questão das incompatibilidades e dos impedimentos para o exercício da advocacia.

A norma basilar em matéria de impedimentos para o exercício da advocacia é o artigo 76º do Estatuto da Ordem dos Advogados (E.O.A.), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, que prescreve o seguinte:
“1. O advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável.
2. O exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou actividade que possam afectar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.”

Esta norma pretende, nomeadamente, garantir a inexistência de colisão de interesses e deveres entre a advocacia e o exercício de qualquer outra actividade que com ela possa conflituar.
Por seu turno, o n.º 1 do artigo 77º do E.O.A. especifica, de uma forma não taxativa, situações concretas de incompatibilidade, em face das quais o legislador revela uma preocupação especial.

Nos termos da alínea j) do n.º 1 do artigo 77º do E.O.A., é nomeadamente incompatível com o exercício da advocacia a assunção da qualidade de “funcionário, agente ou contratado de quaisquer serviços ou entidades que possuam natureza pública ou prossigam finalidades de interesse público, de natureza central, regional ou local”.

E será, a partir desta disposição legal, que daremos resposta ao caso concreto.

Primeiro, teremos de ver se, ao assumir as funções de presidente da direcção do Centro, o Senhor Advogado Estagiário fica abrangido pela incompatibilidade prevista na 1ª parte da alínea j) do n.º 1 do artigo 77º do E.O.A. – “São, designadamente, incompatíveis com o exercício da advocacia os seguintes cargos, funções e actividades (…) funcionário, agente ou contratado de quaisquer serviços ou entidades que possuem natureza pública (…)”.

E, a resposta a dar a esta primeira questão é bastante simples, encontrando-se resolvida pelo artigo 2º dos Estatutos do Centro, onde se estatui que a associação denominada CAAD é uma pessoa colectiva de direito privado.

O que nos permite, desde já, concluir que o vínculo que ligará o Senhor Advogado Estagiário ao Centro será um vínculo de direito privado, porque a comissão de serviço será celebrada numa ambiência de direito privado, em função da natureza jurídica do Centro – pessoa colectiva de direito privado.
Passo seguinte será verificar se o Centro prossegue as finalidades previstas na 2ª parte da alínea j) do n.º 1 do artigo 77º do EOA, isto é, “finalidades de interesse público, de natureza central, regional, ou local”.

E o que está aqui em causa é um factor de incompatibilidade de ordem funcional, em que a incompatibilidade decorre do facto de o exercício de actividade se desenvolver em áreas particularmente sensíveis e, nomeadamente, em estreita ligação com o poder político ou o poder judicial.

Neste caso, o factor de incompatibilidade será não tanto o estatuto jurídico ao abrigo do qual o trabalho ou serviço são prestados, mas a própria relação funcional de colaborador com as actividades desenvolvidas por essas entidades que prosseguem “finalidades de interesse público, de natureza central, regional, ou local”.

Prosseguirá o Centro as finalidades previstas na alínea j) do n.º 1 do artigo 77º do EOA?

Vejamos então.

Nos termos da Lei Orgânica do Ministério da Justiça, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 206/2006, de 27 de Outubro, é atribuição do referido Ministério assegurar o funcionamento adequado do sistema de administração da justiça, nomeadamente, no plano da resolução não jurisdicional de conflitos – cf. artigo 2º.

Neste âmbito, compete ao Ministério da Justiça, através do Gabinete para a Resolução Alternativa de Litígios (GRAL), promover a criação e apoiar o funcionamento de centros de arbitragem e, designadamente, instruir e informar, nos termos da lei os pedidos de criação de centros de arbitragem voluntária institucionalizados.

No exercício dessa competência, o GRAL tem celebrado Protocolos com diversos Centros de Arbitragem, os quais apoia, técnica e financeiramente.

Actualmente, o GRAL apoia onze centros de arbitragem, seis na área do consumo, dois no sector automóvel, o Centro de Mediação e Arbitragem de Dívidas Hospitalares, o ARBITRARE e o CAAD.

A finalidade de todos estes Centros é comum e comum é também a todos os centros de arbitragem instituídos em Portugal, sejam estes de competência genérica ou de competência especializada, e a sua criação depende de acto administrativo do Governo.

E essa finalidade é, tão só, a resolução de litígios. O âmbito e a natureza dos litígios não devem influenciar o raciocínio.

A finalidade prosseguida pelo CAAD é exactamente a mesma do Centro de Arbitragem do Sector Automóvel (CASA), por exemplo, ou de qualquer outro Centro de Arbitragem não apoiado pelo GRAL.

 

A pergunta que fizemos deve por isso ser ampliada: prosseguirão os Centros de Arbitragem institucionalizados as finalidades previstas na alínea j) do n.º 1 do artigo 77º do EOA?

A expressão “finalidades de interesse público” deve ser interpretada com cautela, sob pena de retirarmos conclusões por absurdo. Basta para tal pensar que o exercício da Advocacia prossegue também finalidades de interesse público.

Por isso interpretamos a expressão, como acima já referimos, como estando em causa um factor de incompatibilidade de ordem funcional, em que a incompatibilidade decorre do facto de o exercício de actividade se desenvolver em estreita ligação com o poder político ou o poder judicial.

E verifica-se, in casu, essa estreita ligação?

Entendemos que não.

A criação de qualquer Centro de Arbitragem institucionalizado está sujeita a autorização prévia do Ministro da Justiça (cfr. Decreto-Lei n.º 425/86, de 27 de Dezembro).
Esse requisito não é específico dos Centros constituídos sob a égide do GRAL.

E uma das características inerentes à natureza de um centro de arbitragem é, precisamente, o distanciamento e independência em relação ao poder político e ao poder judicial. Sem ela se subverteria completamente o instituto da arbitragem.

 

Já em 1997, o Bastonário Castro Caldas, em Parecer por ele relatado e aprovado pelo Conselho Geral, retirava as seguintes conclusões:

1. “Nos termos da alínea e) do n.º 1 do art. 69º do E.O.A. o exercício da advocacia é incompatível com a função ou a actividade de Magistrado ou do Ministério Público, efectivo ou substituto, e funcionário ou agente de qualquer Tribunal;
2. A expressão "Tribunal" usada na alínea daquele preceito legal não pode ser alargada a outras instituições que não sejam os Tribunais que integram a Organização Judiciária Estatal;
3. Os Centros de Arbitragem não são Tribunais, nem mesmo na interpretação mais alargada da jurisdição Arbitral; são apenas entidades que se propõem a organização e a administração e apoio ao funcionamento dos Tribunais instituídos para a realização de Arbitragem;
4. Não está vedado aos Advogados integrar, seja a que título for, os Centros de Arbitragens;
5. Qualquer Advogado pode integrar listas de árbitros dos diversos Centros de Arbitragens até porque o exercício da função de Árbitro depende dum reconhecimento e declaração de independência que preserve a sua incompatibilidade com o exercício da advocacia”.

Sendo que, uma das premissas para chegar a tal conclusão foi a de que (e transcrevemos), “ a integração de um Advogado num Centro de Arbitragens (numa entidade autorizada à realização de Arbitragem com carácter institucionalizado) pode ocorrer numa das três vertentes seguintes: a) Como Promotor; b) Como Colaborador, remunerado ou não, do Tribunal em funções de Secretariado; c) Como Árbitro, integrado ou não na relação dos que o Conselho de Arbitragem propôs ou aprovou como elementos seleccionados para a respectiva lista”.

 

Entendemos por isso que as funções de presidente da direcção dum Centro de Arbitragem Institucionalizado que revista a forma de associação privada sem fins lucrativos não é incompatível com o exercício da advocacia.

Mas se, em nosso entender, não existe incompatibilidade, bem alta se deve colocar a fasquia em matéria de impedimentos. E entendemos que poderá existir impedimento, a analisar naturalmente caso a caso, e à luz do artigo 78º do EOA, em relação ao Estado, aos membros da associação e às Partes que ao Centro recorram.

CONCLUSÕES:

1. E com os fundamentos atrás explanados, entendemos que as funções de presidente da direcção de um Centro de Arbitragem Institucionalizado com a natureza de associação privada sem fins lucrativos e que tem por objecto a resolução de litígios emergentes de contratos e de relações jurídicas de emprego público, através de informação, mediação, conciliação ou arbitragem, não é incompatível com o exercício da advocacia e, portanto, com a frequência da fase de formação complementar do estágio.

 

2. O exercício dessas funções poderá no entanto ser gerador de impedimentos que afectem o mandato forense e a consulta jurídica, a analisar naturalmente caso a caso e à luz do artigo 78º do EOA, em relação ao Estado, aos membros da associação e às Partes que ao Centro recorram.

Lisboa, 30 de Janeiro de 2009

O Relator

Jaime Medeiros

Jaime Medeiros

Topo