Consulta Nº 31/2009
Consulta nº 31/2009
Requerente: Conselho de Deontologia de Lisboa
Questão
O Conselho de Deontologia de Lisboa solicita a este Conselho Distrital que se pronuncie sobre a seguinte questão de carácter geral e abstrato:
a) A alínea e) do nº 1 do artigo 87º EOA de 1984 estabelecia ser dever do advogado “não invocar publicamente, em especial perante os tribunais, quaisquer negociações transacionais malogradas, quer verbais quer escritas, em que tenha intervindo advogado”.
b) No entanto, pelas alíneas e) e f) do nº 1 do artigo 87º do actual Estatuto, o advogado só estará sujeito a sigilo quanto a factos (i) “de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio ou (ii) “de que tenha conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, verbais ou escritas, em que tenha intervindo.
c) Esta alteração deve ser interpretada literal e restritivamente no sentido de que o advogado não estará sujeito a sigilo quanto a a negociações malogradas em que tenha intervindo outro advogado em representação do seu cliente?
Parecer
A ausência de correspondência literal entre a redacção da alínea e) do artigo 86º do EOA de 1984 e da actual redacção das alíneas e) e f) do nº 1 do artigo 87º do actual Estatuto foi já salientada pelo Dr. Fernando Sousa Magalhães (cfr. Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado e Comentado, Almedina, 2005, pag. 106 e sgs.).
A esse propósito escreveu “Pelas razões expostas, não se aplaude a solução acolhida pelo actual EOA, porquanto resulta do alcance da norma que só o advogado que interveio nas negociações malogradas fica sujeito a segredo (...)”.
Na mesma linha de interpretação, o Dr. Luis Laureano Santos, em relato do Parecer AL-57-06 aprovado pelo Conselho Superior, escreveu “Acompanhamos, na totalidade, os comentários e a crítica do Senhor Dr. Fernando Sousa Magalhães, acima transcritos. O certo, porém, é que, independentemente de críticas - sempre admissíveis e possíveis e ainda que, porventura, acertadas e justas - a norma que constava do artº. 86º-1-e) do EOA/84(2 ) foi revogada e só ao abrigo dela seria viável encontrar eventual ilícito no procedimento do Senhor Advogado Participado.
Na verdade – aí correspondem as versões relatadas quer pela Senhora Advogada Participante quer pelo Senhor Advogado Participado – o Senhor Dr. … não interveio em quaisquer negociações pré-judiciais e não contactou, no seu decurso, quer com os Clientes da Senhora Dra. … ou com os representantes daqueles, quer com a própria Colega ora Participante, tendo-se limitado a fazer verter na contestação os factos que lhe foram (a ele, Dr. …, e também ao Dr. …), posteriormente às negociações, transmitidos pela Demandada com o propósito de ser elaborada a contestação a oferecer em Juízo, e a que ambos, Dr. … e Dr. …, foram, antes e de todo, alheios.
As cartas juntas à contestação – escritas e remetidas pela Senhora Advogada Participante directamente à Empresa que era, no caso, a parte contrária – destinaram-se a fazer a prova dos factos articulados, não cobertos, no regime legal actual e como se viu, por sigilo profissional, e, assim, não estão, também elas, cobertas pela protecção a que se refere o artº. 87º-3 do EOA/2005.”
Em sentido contrário pronunciou-se já este Conselho Distrital, a propósito de correspondência entre advogados, junta aos autos pela própria parte (cfr. PDSP 31/09, in Colectânea de Pareceres do CDL).
Entendemos nesse processo que a correspondência entre advogados não perde a sua natureza sigilosa pelo facto de ter saído – voluntaria ou involuntariamente - da posse ou do controlo do advogado titular do sigilo. E por isso tal correspondência não deve fazer prova em juízo se a sua divulgação não foi previamente autorizada nos termos do nº 4 do artigo 87º do E.O.A., sob pena de ser fácil defraudar o regime do instituto jurídico-deontológico, plasmado no artigo 87º do E.O.A.
É bem de ver que a questão colocada pelo Conselho de Deontologia de Lisboa tem a máxima relevância doutrinal e prática
Pode ou não um advogado alegar em juízo negociações malogradas em que tenha intervindo outro advogado em representação do seu cliente sem solicitar previamente dispensa de sigilo nos termos do nº 4 do artigo 87º ? E a correspondência entre advogados que provem essas negociações malogradas é susceptível de fazer prova em juízo, desde que trocadas com outro advogado em representação do seu cliente ?
Entendemos que a obrigação de sigilo profissional é, não só, uma manifestação da independência e dignidade do advogado, mas igualmente uma “ferramenta” ao dispor do advogado que lhe permite negociar livremente em termos transaccionais sem colocar em crise a defesa dos interesses dos seus clientes. Isto é, uma garantia que permite ao advogado negociar de boa fé com os seus pares e partes contrárias, sem conceder.
A não ser assim, o advogado passaria a estar retraído, coibido, a expor em documento os termos de eventuais negociações, prejudicando por isso um dos seus deveres deontológicos - o de aconselhar toda a composição que ache justa e equitativa.
O segredo profissional tem assim, em matéria de negociações malogradas, uma trípla vertente:
- A de contribuir para a independência do advogado;
- A de proteger os legítimos interesses e expectativas do seu cliente;
- Mas também a de proteger os legítimos interesses da contra-parte e do advogado que a representa;
Sendo o segredo profissional a “blindagem” da profissão e a sua “regra de ouro”, não se compreende que fosse facilmente defraudado, permitindo-se a livre divulgação do conteúdo de negociações malogradas desde que o advogado que as divulgue não tenha tido nelas intervenção. Estava aberto o caminho para a desvirtualização completa do instituto.
Sobretudo porque temos para nós que o terceiro vértice acima referido- a protecção dos legítimos interesses da contra-parte e do advogado que a representa - tem tanta dignidade e merece ser tão respeitado e salvaguardado como os demais.
A igualdade de armas em juízo é exemplo flagrante. Que equilíbrio haveria se o mandatário de uma das partes não tivesse sujeito a sigilo e pudesse livremente alegar e provar por correspondência entre advogados negociações malogradas pelo simples facto de nelas não ter intervindo, enquanto o mandatário da outra parte a ele continuasse sujeito ?
Uma interpretação literal e isolada das alíneas e) e f) do nº 1 do artigo 87º levar-nos-ia assim a conclusões absurdas.
Impõe-se por isso uma viagem mais pausada sobre o instituto do segredo profissional e sobre as realidades abrangidas pelo artigo 87º do EOA.
Em tese lógica, um advogado poderá tomar conhecimento do conteúdo de negociações malogradas por cinco vias, (i) porque delas terá tomado conhecimento directo, (ii) porque lhe terão sido transmitidas pelo cliente ou pelo seu anterior mandatário , (iii) porque lhe terão sido transmitidas pelo mandatário da parte contrária ou da co-parte, (iv) porque lhe terão sido transmitidos por colega de escritório ou (v) transmitidos por terceiros.
A sujeição a sigilo de negociações malogradas não se resume, por isso, à previsão das alíneas e) e f) do nº 1 do artigo 87º.
Existe submissão a sigilo quando um advogado toma conhecimento pelo seu cliente de negociações malogradas – alínea a).
Existe submissão a sigilo quando um advogado toma conhecimento pelo anterior advogado do seu cliente – por instruções deste - de negociações malogradas – alínea a).
Existe submissão a sigilo quando um advogado toma conhecimento de negociações malogradas atravéz de colegas de escritório – alínea c).
E entendemos que existe submissão a sigilo quando um advogado toma conhecimento de negociações malogradas mesmo que seja por terceiros e aquelas não sejam de conhecimento público.
Nunca é demais recordar que o elenco das alíneas a) a f) do artigo 87º é meramente indicativo e que a regra é a da sujeição a sigilo a todos os factos cujo conhecimento pelo advogado lhe advenha do exercício das suas funções. E só não estarão sujeitos se, por natureza, os factos não sejam em si sigilosos.
Mas vimos já que, por natureza, as negociações onde hajam intervindo advogados são por natureza, sigilosas.
Chegamos assim à conclusão de que o advogado estará sujeito a sigilo quanto ao conteúdo das negociações malogradas em que tenha intervindo outro advogado em representação do seu cliente. E esse sigilo recaí também sobre a correspondência trocada entre os mandatários que nelas intervieram.
Conclusão
1. O advogado está sujeito a sigilo quanto ao conteúdo das negociações malogradas em que tenha intervindo outro advogado em representação do seu cliente.
2. E esse sigilo recaí também sobre a correspondência trocada entre os mandatários que nelas intervieram.
3. O teor literal das alíneas e) e f) do artigo 87º do EOA não prejudica este entendimento, que em última análise resulta do corpo do artigo.
Lisboa, 5 de Setembro de 2009
O Relator
Jaime Medeiros
Jaime Medeiros
Topo