Pareceres do CRCoimbra

PARECER Nº 19/PP/2023-C

PROCESSO DE PARECER N.º 19/PP/2023-C

 

Informação e Publicidade (artigo 94º do Estatuto da Ordem dos Advogados)

 

Por mensagem de correio electrónico dirigida ao Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, a Exma. Senhora Dra. RA..., titular da cédula nº …L e com domicílio profissional na Av…, veio solicitar a emissão de parecer nos seguintes termos:

“(…) O clube atlético Our... pretende colocar um cartaz no estádio de futebol com a seguinte menção: “Este Clube é composto por todas as pessoas que contribuem para ele, nomeadamente o escritório N…Advogados.” Tal ato pode consubstanciar um ato ilícito de publicidade?”

 

A questão submetida à cognição deste Conselho Regional versa sobre a problemática da publicidade do exercício da advocacia, actualmente prevista no artigo 94º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de setembro de 2015 (doravante designado de modo abreviado por EOA).

 

O Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados é competente para emitir a pronúncia solicitada, porquanto, versa sobre questão de carácter profissional verificada na área da sua circunscrição territorial (artigo nº 1, alínea f) do EOA), impondo-se, emitir o parecer, dando resposta a questão suscitada.

 

O conceito de publicidade tal como definido no artigo 3º do Código da Publicidade aprovado pelo D.L. nº 330/90 de 23 de outubro, na sua versão actualizada, é “(…) qualquer forma de comunicação feita por entidades de natureza pública ou privada, no âmbito de uma actividade comercial, industrial, artesanal ou liberal, com o objectivo directo ou indirecto de: a) Promover, com vista à sua comercialização ou alienação, quaisquer bens ou serviços; b) Promover ideias, princípios, iniciativas ou instituições.”

 

Publicidade significa, assim, a actividade promocional de bens ou serviços junto dos destinatários a quem se dirige, afigurando-se como certo, do teor literal do preceito legal citado, que se aplica a actividades liberais e, consequentemente, em abstracto à advocacia.

 

Apesar da aparente simplicidade da questão, o certo é que, a actual redacção do artigo 94º do EOA decorre de uma profunda e controversa evolução histórica, cuja alusão se entende pertinente no caso em análise.

 

Na vigência do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pelo D.L. nº 84/84 de 16 de março, consignava o artigo 80º que: “1 -É vedada ao advogado toda e qualquer espécie de reclamo por circulares, anúncios, meios de comunicação social ou qualquer outra forma, directa ou indirecta, de publicidade profissional, designadamente divulgando o nome dos seus clientes. 2 – Os Advogados não devem fomentar, nem autorizar, notícias referentes a causas judiciais ou outras questões profissionais a si confiadas.”

 

À proibição total da publicidade da advocacia sempre esteve subjacente a relevante função pública desempenhada pelo advogado na administração da justiça e o respeito pela confidencialidade profissional estabelecida entre o advogado e o cliente, numa indelével lógica de salvaguardar o decoro da profissão evitando qualquer confusão entre o exercício da advocacia e as actividades de natureza mercantil.

 

Sucede que, reflexo da evolução dos tempos, do desenvolvimento exponencial dos meios tecnológicos e informáticos, da crescente globalização, sem ignorar a própria alteração do modo de exercício da advocacia com o florescimento das sociedades de advogados tornou-se premente a ponderação da alteração das regras atinentes a publicidade da advocacia.

 

Na esteira da discussão já então instalada no seio da Ordem dos Advogados surge a aprovação das conclusões 133 a 144 do V Congresso dos Advogados Portugueses, realizado no ano de 2000, nos seguintes termos “(…) o EOA devia permitir a publicidade informativa do advogado, a qual deveria conter informação objectiva, verdadeira, digna, no rigoroso respeito dos deveres deontológicos, do segredo profissional e das normas legais sobre publicidade e concorrência, cabendo ao Conselho Geral a elaboração de um Regulamento de Publicidade onde se faça constar em concreto o conteúdo da informação objectiva, os actos lícitos e ilícitos da publicidade informativa, os suportes permitidos como veículos publicitários e as sanções aplicáveis em caso de violação.”

 

A citada conclusão rapidamente passou a ser suporte interpretativo na Ordem dos Advogados, de tal modo que o parecer do Conselho Geral nº E-41/02 de 17 de janeiro de 2003[1], considerou o uso da televisão e internet como meios lícitos de publicidade, desde que fossem respeitados os princípios deontológicos, posição que viria a ser acolhida aquando da revisão do Estatuto da Ordem dos Advogados em 2005.

 

Em sentido similar pronunciou-se Bernardo Diniz de Alaya ao referir que “(…) a proibição genérica da publicidade profissional, imposta pelo nº 1 do artigo 80º do EOA, levanta , desde logo, a questão da sua conformidade constitucional. É certo que, como qualquer profissão, a advocacia também tem as suas especificidades e que é exercida também na prossecução de alguns interesses públicos; daí que a lei (o Estatuto da Ordem dos Advogados, no caso) possa prever restrições específicas à actividade publicitária dos advogados. Porém, o que se afigura manifestamente excessivo – e por isso violador do princípio constitucional da proporcionalidade (artigos 18º, nº 2, 19º, nº 4, 265º e 266º, nº 2 da Constituição) – é uma proibição genérica de toda a publicidade profissional. Se o artigo 80º do Estatuto da Ordem dos Advogados admite anúncios em jornais, há-de entender-se que os admite, por identidade de razão, noutros meios de comunicação; é o caso, hoje, da internet, que ocupa, enquanto meio de divulgação de informação, um papel semelhante ao do tradicional suporte de papel.”[2]

 

Entre vozes profundamente discordantes quanto à posição supra elencada[3], a tendência liberalizante quanto a esta matéria, acabaria por ser acolhida na redação do artigo 89º do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei nº 15/2005 de 26 de janeiro, que grosso modo se mantém no actual artigo 94º do EOA.

 

O sobredito preceito passa a permitir aos advogados a divulgação de informação digna, verdadeira, objectiva relacionada com o exercício da advocacia, proibindo a publicidade de carácter propagandístico, enganoso ou comparativo, estabelecendo-se, assim, uma regra de livre divulgação da advocacia, com salvaguarda da defesa dos interesses do consumidor à informação (artigo 37º da Constituição da Republica Portuguesa), na defesa dos interesses dos advogados e das sociedades de advogados, na respectiva dimensão de liberdade de iniciativa económica (artigo 61º da Constituição da República Portuguesa), sem descurar a necessidade de cumprimento das regras deontológicas impostas a todos os advogados.

 

A admissibilidade da publicidade da actividade do advogado, ficou definitivamente firmada com a previsão inserta no Código de Deontologia dos Advogados Europeus [4] que revogando o Regulamento nº 25/2001 de 22 de novembro (que proibia a publicidade) sob a epígrafe “Publicidade Pessoal”, veio consignar no seu artigo 2.6. o seguinte:

“2.6.1. O advogado pode informar o público dos serviços por si oferecidos, desde que tal informação seja verdadeira, objectiva, não induza em erro e respeite a obrigação de confidencialidade outros deveres deontológicos essenciais.

2.3.2. é permitida a publicidade pessoal do advogado através de qualquer meio de comunicação, nomeadamente a imprensa, rádio, televisão, meios electrónicos ou outros, na medida em que cumpra os requisitos definidos no artigo 2.6.1. ”

 

Também o Regime Jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais, aprovado pela Lei nº 2/2013 de 10 de janeiro [5], considera a questão atinente à publicidade, prescrevendo no artigo 32º que:

“1 – Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, não podem ser estabelecidas normas que imponham uma proibição absoluta de qualquer das modalidades de publicidade relativa a profissão organizada em associação pública profissional.

2 – Podem ser impostas restrições em matéria de publicidade quando essas restrições não sejam discriminatórias, sejam justificadas por razões imperiosas de interesse público, designadamente para assegurar o respeito pelo sigilo profissional, e estejam de acordo com os critérios de proporcionalidade.”

 

Neste quadro, amplamente mais permissivo no que tocante à matéria da publicidade, o artigo 94º do EOA vigente (aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de setembro de 2015), viria a acolher quase na íntegra a redacção do anterior artigo 89º, salvaguardando tanto quanto possível a tradição histórica da advocacia no cotejo com as necessárias adaptações decorrentes da evolução dos sistemas de informação, numa clara liberalização condicionada.

 

Nas palavras de Fernando Sousa Magalhães “(…) não obstante a evidente liberalização do regime legal da publicidade dos advogados, subsiste inalterada a barreira entre a publicidade informativa, pessoal e profissional e a publicidade comercial ou propagandística, comparativa e tendencialmente enganosa, sendo aquela lícita e esta ilícita, barreira essa imposta pela exigência de decoro e da dignidade da profissão.”[6]

 

No mesmo sentido, pronunciou-se o Parecer 21-PP-2018-C do Conselho Regional de Coimbra, relatado pelo Ilustre Conselheiro Manuel Leite da Silva, que refere que “Independentemente da discussão sobre a necessidade de impedir que a profissão seja conspurcada por uma vertente mercantilista ou comercial da profissão, é evidente a liberalização do regime legal da publicidade dos advogados, mas mantendo-se, contudo (e bem, a nosso ver) inalterada a necessária e indispensável barreira entre a publicidade informativa, pessoal e profissional e a publicidade comercial ou propagandística, comparativa e tendencialmente enganosa, visando, pela sua essência e definição, a promoção, com vista à comercialização e à potencialização desta, de quaisquer serviços.”

 

Nos termos preceituados pelo artigo 94º do EOA é, pois, lícito aos advogados a publicitação da respectiva actividade, de modo objectivo, verdadeiro e digno, no escrupuloso respeito pelos deveres deontológicos, do segredo profissional e das normas legais vigentes em matéria de publicidade e concorrência.

 

Outrossim, verifica-se no texto legal, uma inequívoca intenção de preservar os valores históricos e deontológicos que integram o cunho próprio da profissão, que lhe imprime um carácter distintivo relativamente às demais actividades  de natureza puramente comercial e económica.

Para tanto, o artigo 94º, nº 4 do EOA (à semelhança do que já sucedia na redacção do nº 3 do artigo 89º do anterior Estatuto), prevê um elenco não taxativo de actos ilícitos de publicidade, consignando que aos advogados permanece vedada a possibilidade de publicitarem a sua actividade em moldes diversos dos previstos nos números 2 e 3 do mesmo preceito legal.

 

Com a previsão supra enunciada de um elenco aberto de actos ilícitos de publicidade, o legislador, certamente, pretendeu impossibilitar aos advogados o uso de meios de publicidade (quer quanto à forma quer quanto ao conteúdo), diversos dos previstos nos números precedentes do mesmo artigo. Isto é, caso a concreta publicidade visada não se subsuma a nenhum dos actos lícitos de publicidade concretamente definidos, cuja previsão, diga-se, é bastante detalhada e abrangente, por maioria de razão terá que se considerar como publicidade ilícita e consequentemente vedada aos advogados, só assim, se garantindo a ratio intrínseca à norma de salvaguarda da dignidade da profissão ante o interesse público prosseguido e o respeito dos deveres deontológicos como imposição transversal a todos os advogados, independentemente do modo como exercitem a profissão.

 

Ora, da leitura atenta do preceituado nos nº 2 e 3º do artigo 94º do EOA, cremos que o acto de publicidade em análise não se enquadra em nenhuma das alíneas.

 

Embora se considere louvável a iniciativa de reconhecimento que o Clube Atlético Our… pretende fazer a determinado indivíduo (ou indivíduos) pelo meritório contributo que presta para manutenção da sua actividade, temos que, no caso em apreço tal circunstância não pode ser dissociada do facto do agraciado exercer a título principal a advocacia e consequentemente estar sujeito a observância dos deveres deontológicos e de dignificação da profissão.

 

A afixação num estádio de futebol de um cartaz com a mensagem visada, contraria os actos lícitos de publicidade dos advogados e afigura-se-nos encerrar um profundo fim comercial e propagandístico, contrário ao escopo visado pelo nº 1 do artigo 94º do EOA, de salvaguarda da dignidade da profissão.

 

Com efeito, não será despiciendo notar que, como é consabido, os espaços publicitários dos estádios de futebol, estão por regra reservados a patrocinadores que exercem actividades de fins puramente económicos, bem como, as grandes marcas cujos produtos se destinam àquele concreto nicho de mercado frequentador do concreto espaço.

 

O legislador ao prever de modo não taxativo os actos ilícitos de publicidade, visou precisamente salvaguardar que a menção aos advogados (feita pelos próprios ou por terceiros) não assuma carácter insinuante e desrespeitoso em face dos deveres deontológicos a que está adstrito, não seja efectuada em qualquer lugar ou de qualquer modo que não dignifique a profissão, imprimindo-lhe o necessário cunho distintivo relativamente aos anúncios dos que prosseguem actividades puramente mercantis.[7] [8]

 

Ora, a publicação de um cartaz nos moldes gizados, além de não dignificar a profissão, sempre se assumirá de conteúdo persuasivo e enaltecedor da N…Advogados perante os frequentadores daquele concreto local de afixação e nessa medida potenciador de angariação de clientela, conduta que, como é consabido, não é permitida em face do preceituado no artigo 90º, nº 2, alínea h) do EOA.

 

A este propósito não podemos deixar de relembrar as doutas e ainda actuais palavras de António Arnaut ao afirmar que “(…) a advocacia não pode confundir-se com qualquer actividade comercial ou industrial, pois, enquanto estas transacionam mercadorias, o advogado vela pela honra, liberdade, fazenda e, às vezes, pela vida do seu constituinte”, devendo, “tornar-se conhecido e ser procurado pela sua competência e probidade, e não pelo engodo de campanhas publicitárias.”

 

Deste modo, conclui-se que a mensagem de agradecimento que o Clube Atlético Our… pretende publicar com a expressa e textual menção a N..Advogados, não se subsume a nenhum dos actos lícitos de publicidade taxativamente previstos nos nº 2 e 3º do artigo 94º do EOA, enquadrando-se, a contrário, nos atos ilícitos de publicidade aludidos no nº 4 do mesmo preceito, conquanto, se revela, ainda potenciadora de colocar em crise a dignidade e ética da profissão.

 

Conclusões,

 

a)      Nos termos do artigo 94º, nº 1 do EOA, os advogados podem publicitar o exercício da sua actividade, desde que, o façam de forma objectiva, verdadeira, digna e no rigoroso respeito dos deveres deontológicos, do segredo profissional e das normas legais vigentes em matéria de publicidade e concorrência;

b)      A afixação num estádio de futebol por parte de um terceiro de uma mensagem de agradecimento a um advogado ali concretamente identificado, não encontra acolhimento no vasto elenco taxativo de actos lícitos de publicidade a que aludem os nº 2 e 3 do artigo 94º do EOA, integrando-se, assim, no elenco aberto de actos ilícitos de publicidade previsto no nº 4 do mesmo preceito;

c)       De igual modo a publicação de um cartaz nos moldes gizados, além de não dignificar a profissão, sempre se assumirá de conteúdo persuasivo e enaltecedor da N…Advogados perante os frequentadores daquele concreto local de afixação e nessa medida potenciador de angariação de clientela, conduta que, como é consabido, não é permitida em face do preceituado no artigo 90º, nº 2, alínea h) do EOA;

d)      Pelas razões expostas, conclui-se, assim, pela inadmissibilidade da colocação de um cartaz nos termos e moldes gizados no pedido apresentado ao Conselho Regional de Coimbra;

 

 

É este, salvo melhor entendimento, o nosso parecer,

Castelo Branco, 11 de outubro de 2023


[1] publicado no Boletim da Ordem dos Advogados nº 24/25 de 2003, pág. 7

[2] Processo nº 30.614 do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, Agosto de 2003;

[3] destacando-se António Arnaut que nas conclusões do VI Congresso dos Advogados Portugueses salienta a propósito do conteúdo do artigo 89º do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei nº 15/2005, que tais alterações “ferem a dignidade da advocacia e afrontam os profundos sentimentos da classe e a tradição portuguesa”

[4] Cuja tradução  para português foi aprovada na Deliberação nº 2511/2007, publicada no Diário da República nº 249, série II, de 27/12/2007;

[5] Nos exactos termos decorrentes do artigo 1º, nº 1 do EOA, a Ordem dos Advogados é uma associação pública profissional;

[6] Fernando Sousa Magalhães, Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado e Comentado, 10ª edição, pág. 148;

[7] Em sentido similar pronunciou-se o Relator Miguel Salgueiro Meira no processo nº 41/PP/2012 de janeiro de 2014, ao afirmar que “(…) a actividade do advogado não deve ser publicitada por qualquer `placa` ou `tabuleta` em recintos desportivos, ou outros recintos ou na via pública como uma qualquer actividade comercial, com a única excepção da placa identificativa. (…) o exercício da advocacia não deve ser publicitada em folhetos, revistas ou pasquins de um qualquer clube futebolístico ou associado a qualquer outra actividade”. disponível em www.oa.pt

 

[8] A este propósito, veja-se, também o Parecer do Conselho Regional de Coimbra nº 30/PP/2019-C, proficientemente relatado pela Ilustre Conselheira Sílvia Carreira, cujo conteúdo e conclusões acolhemos na íntegra e sem reservas;

 

Sandra Gil Saraiva

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