Pareceres do CRCoimbra

PARECER Nº 15/PP/2023-C

Processo de Parecer n.º 15/PP/2023-C

 

Deontologia Profissional

O exercício da advocacia em causa própria e o cumprimento das regras deontológicas

 

Por requerimento dirigido à Exma. Presidente do Conselho Regional de Coimbra, a Ilustre Advogada LP..., titular da cédula profissional nº 5…C, com domicílio profissional na Rua da Liberdade …, requereu a emissão de parecer, suscitando várias questões de caráter profissional, nos termos do pedido que por razões de fidelidade se transcreve na íntegra:

“Conclui,

Que a Dra. CB..., Advogada que se apresenta nos autos referenciados, como Mandatária em causa própria e como parte, por força do disposto no nº 1 do artigo 83º e no nº 2 do artigo 81º do EOA, se deverá considerar impedida de patrocinar a si mesma, posto que ela atuou em representação do Autor em acordo de divórcio consensual, a menos que logre obter dispensa de guardar sigilo profissional (nos termos do regulamento de dispensa de segredo profissional); bem como abster-se de contactar a parte contrária, no que refere ao andamento do processo em causa.

Nestes termos e nos melhores de Direito, requer-se a V.Exa.:

 

a)      O envio de parecer acerca de violação de dever deontológico e possibilidade da Advogada poder advogar em causa própria, conforme deriva da interpretação articulada do artigo 66º do EOA, conjugado com o artigo 1º da Lei 49/2004 de 29 de Agosto (Lei dos actos Próprios dos Advogados e Solicitadores);

b)      Caso o entendimento seja de que não existe qualquer impedimento em que a Advogada que redigiu o divórcio seja também Mandatária nos autos e ainda assim mantenha comunicação com o Autor sobre o processo, (pois ao próprio Advogado é facultada a possibilidade de se representar a si próprio em juízo), por maioria de razão há se considerar o que a impeça de falar com a outra parte, verbalmente ou por escrito,

c)       E pelas limitações que decorrem do seu dever de guardar segredo profissional e ainda, pela conduta da mesma nas redes sociais, requer-se a verificação de mecanismos que assegurem o bom atuar da Advogada.

d)      Por fim, informa que foi enviada comunicação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 96º do EOA, para um email conhecido da Advogada, posto que nos cadastros da Ordem dos Advogados e no Citius, consta o endereço de email profissional da mesma, que ao que parece é também sua residência.”

 

O pedido de parecer em apreço foi presente a sessão do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados e para os devidos efeitos distribuído à aqui Relatora.

Após análise da argumentação invocada pela Requerente que culmina na formulação do pedido supra transcrito, entendeu a Relatora que a correta apreciação de todas as questões suscitadas impunha a junção de elementos documentais intrinsecamente conexionados com as problemáticas em apreciação, o que motivou a prolação do despacho que se transcreve:

“Após análise perfunctória do pedido de parecer formulado ao Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados pela Ilustre Advogada LP..., considera-se que a correta pronúncia quanto às questões suscitadas, impõe a concretização e demonstração documental da facticidade convocada no respetivo articulado.

Deste modo, notifique-se a Exma. Senhora Advogada Requerente para instruir o pedido de parecer com os seguintes elementos:

a)      Cópia do substabelecimento sem reserva emitido a favor da Dra. CB... e comprovativo da respetiva junção aos Autos; (a que aludem os artigos 1º, 5º e 6º do pedido);

b)      O requerimento junto aos Autos e documentos que o instruem, a que alude nos artigos 3º, 7º e 17º do pedido;

c)       Cópia da petição inicial e documentos, apontada no artigo 8º do pedido dirigido ao Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados;

d)      Cópia da documentação que instruiu o pedido de divórcio por mútuo consentimento apresentado junto da Conservatória do Registo Civil; (artigo 10º)

e)      Cópia da Ata de divórcio por mútuo consentimento;

f)       Cópia do Acordo de Regulação das Responsabilidades parentais”.

 

Em resposta a Requerente juntou diversa documentação, mormente os elementos acima melhor discriminados, de cuja análise resulta, em síntese, a seguinte factualidade relevante para emissão do parecer solicitado:

·         Por requerimento datado de 28 de fevereiro de 2016, redigido em folha de papel timbrado da sociedade Fr… & Fr… – Advogados, com sede na Rua Melo …, CB... e SSG… (agora representado pela advogada consulente), requereram junto da Conservatória do Registo Civil de C…, o respetivo divórcio por mútuo consentimento, juntando para o efeito, a certidão de casamento, o acordo alcançado quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais da filha menor LBG..., o acordo sobre o destino da casa de morada de família e ainda procuração forense (cuja cópia não nos foi remetida), presumivelmente emitida a favor da sociedade de advogados supra identificada.

·         O sobredito requerimento e acordos foram remetidos a CB... e SSG... em 28 de fevereiro de 2018, através de mensagem de correio electrónico enviada por CFF...[1] (cff…@gmail.com)

·         O divórcio por mútuo consentimento foi decretado em 4 de maio de 2018, extraindo-se da ata de conferência do Processo de Divórcio e separação de pessoas e bens por mútuo consentimento nº 1…/2018 que apenas estiveram presentes os dois elementos do casal agora dissolvido.

·         O progenitor da menor LBG... em data não concretamente apurada regressou ao Brasil, país onde ainda se encontra a residir;

·         Em 1 de junho de 2022 a Advogada Requerente em representação de SSG..., deduziu incidente judicial de alteração da regulação das responsabilidades parentais de LBG..., concluindo com a formulação do seguinte pedido: “a) Ser permitido ao progenitor nos períodos de permanência em Portugal conviver a menor. b) Fixar-se o valor de €175 (Cento e setenta e cinco euros) mensais, a título de pensão de alimentos, a que acresce metade do valor das despesas.”

·         O referido incidente de alteração da regulação das responsabilidades parentais corre termos com o nº 1967/22…, no Tribunal Judicial da Comarca de L… – Juízo de Família e Menores do B…;

·         Por requerimento subscrito por CB... foi junto aos sobreditos Autos substabelecimento sem reserva emitido pela Ilustre Advogada JRG..., titular da cédula profissional nº 1…L, com domicílio profissional na Rua João L…, a favor de CB..., advogada titular da cédula profissional nº 5…L, com domicílio profissional na Avenida ….

·         Por via da junção do mencionado substabelecimento sem reserva a advogada visada, CB..., passa a advogar em causa própria no âmbito do incidente de alteração das responsabilidades parentais da respectiva filha menor LBG...;

·         Na qualidade enunciada – de advogada em causa própria – a Ilustre Colega CB... em 30 de maio de 2023 juntou aos Autos requerimento de resposta/oposição ao pedido de alteração das responsabilidades parentais apresentado pelo progenitor da filha menor do dissolvido casal, concluindo com o seguinte pedido: “1- Que a comunicação volte a ser de forma cordial entre Requerente e Requerida, para tratar de assuntos da menor; 2 – Que a mandatária do Requerente, sempre que for necessário, entre em contacto por email da Ordem dos Advogados; 3 – Que o Requerente compareça a mais uma reunião conjunta na Assistência Técnica, pois foi esse o desdobramento da reunião di dia 18/05/2023, sendo esta a posição sugerida ATE. 4 – Que o Conflito de Interesse não seja mais um motivo de ameaça do Requerente, inclusive porque o órgão responsável pela sua apuração e julgamento é a ordem dos Advogados e a Requerida irá responder perante aquele órgão quando notificada no processo que tem contra si. Entretanto caso V.Exa. entenda de forma diversa, seja o motivo embasado. 5 – Requer ainda o recebimento do presente Requerimento e juntada dos documentos que o acompanham.”

·         Com o requerimento a que alude o ponto antecedente foram juntos vários documentos, a saber, cópia das comunicações estabelecidas entre o dissolvido casal através de whatsapp e email, anotando-se que algumas dessas mensagens se encontram totalmente ilegíveis, e concluindo-se que a grande maioria versa essencialmente sobre assuntos respeitantes à filha menor em comum.

·         Com o requerimento de resposta apresentado pela Advogada no incidente de regulação das responsabilidades parentais, foram ainda juntas comunicações de correio electrónico remetidas pela Advogada requerente à Advogada visada e vice-versa, cujo conteúdo se analisará de modo detalhado aquando da pronúncia quanto ao dever de sigilo profissional;

 

Efetuada a breve resenha da factualidade relevante para emissão do parecer solicitado, importa agora balizar as questões suscitadas pela Advogada Requerente a que cumpre dar resposta adequada e concreta, que são as seguintes:

1 – Admissibilidade estatutária da visada advogar em causa própria;

2 – Existência de conflito de interesses na atuação da advogada visada;

3 – Verificação da existência de algum impedimento na atuação da visada;

4 – Do dever de sigilo profissional;

5 – Considerações finais;

 

As questões enunciadas inserem-se no domínio da competência consultiva dos Conselhos Regionais prevista no artigo 54º, nº 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de setembro (doravante designado de modo abreviado por EOA).

O Conselho Regional de Coimbra dispõe, assim, de atribuições em matéria de pronúncia sobre questões de caráter profissional que se insiram na sua delimitação territorial, impondo-se, deste modo, a emissão do parecer solicitado.

Anote-se a título antecipatório que as conclusões extraídas na presente pronúncia cingem-se aos elementos disponibilizados à data do pedido, não salvaguardam quaisquer futuras ocorrências que possam advir nos Autos e que aqui não tenham sido consideradas porque totalmente desconhecidas, nem versa sobre as potenciais condutas processuais entretanto adotadas por ambas as partes suscetíveis de configurar infrações de natureza disciplinar, cuja análise integra a esfera de competências próprias dos Conselhos de Deontologia, conforme preceitua o artigo 58º alíneas a) e b) do EOA que dispõem sobre as competências que legalmente estão cometidas as Conselhos de Deontologia a quem incumbe “Velar pelo cumprimento, por parte dos advogados e advogados estagiários com domicílio profissional na área da respetiva região, das normas de deontologia profissional, podendo, independentemente de queixa e por sua própria iniciativa, quando o julgarem justificado, conduzir inquéritos e convocar para declarações os referidos advogados, com o fim de aquilatar do cumprimento das referidas normas e promover a ação disciplinar, se for o caso.” e, bem assim, “Exercer o poder disciplinar em primeira instância (…)”.

Assim, o conteúdo do presente parecer é, como tem que ser, respeitante à questão concreta em análise, nos exatos termos (de modo, tempo e lugar) apresentados ao Conselho Regional de Coimbra.

Atenta a multiplicidade de questões suscitadas urge, por razões de simplificação e facilidade de compreensão, assegurar, na medida do possível, o tratamento autónomo e individualizado de cada uma delas.

 

Da admissibilidade estatutária da visada advogar em causa própria

A questão do exercício da advocacia em causa própria tem sido objeto de apreciação no seio da Ordem dos Advogados, destacando-se a este propósito que o Conselho Geral da Ordem dos Advogados, num passado recente se pronunciou proficientemente acerca do dissidio nos pareceres nº 26/PP/2020-G e nº 17/PP/2021-G[2], ambos Relatados pela Dra. Maria Emília Morais Carneiro, ali se concluindo que “1 – No âmbito da sua actividade profissional os advogados podem exercer advocacia em causa própria; 2 – A única exceção a esta regra é em sede penal, no caso de o advogado ser arguido, ou ser ofendido e pretenda constituir-se assistente como decorre da lei processual penal, arts. 64º, nº 1 do art. 70º, 141º, 360º, 371º, 385º, 389º, 391º-E, 396º, 421º e 422º”.

Calcorreando o EOA vigente constata-se que o legislador em momento algum se refere à possibilidade de o advogado poder advogar em causa própria, mantendo, assim a opção vertida nas sucessivas legislações antecedentes, cuja sintetização se encontra proficientemente efectuada nos pareceres supra aludidos, dispensando-se, assim, maiores considerandos a este propósito. 

Ora a possibilidade de os Advogados poderem advogar em causa própria deriva da interpretação conjugada dos artigos 66º do EOA e artigo 1º da Lei nº 49/2004 de 29 de agosto (Lei dos Atos Próprios dos Advogados e Solicitadores)

O artigo 66º do EOA sob a epígrafe “Exercício da advocacia em território nacional”, refere que: “1 – Sem prejuízo do disposto no artigo 205º, só os advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados podem, em todo o território nacional, praticar atos próprios da advocacia, nos termos definidos na Lei nº 49/2004 de 24 de agosto. (…) 3 – O mandato judicial, a representação e assistência por advogado são sempre admissíveis e não podem ser impedidos perante qualquer jurisdição, autoridade ou entidade pública ou privada nomeadamente para defesa de direitos, patrocínio de relações controvertidas, composição de interesses ou em processos de mera averiguação, ainda que administrativa, oficiosa ou de qualquer outra natureza. (…) ”

Na mesma senda prescreve o artigo 1º nº 1 da Lei nº 49/2004 de 24 de agosto que “Apenas os licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados e os solicitadores inscritos na Câmara dos Solicitadores podem praticar os actos próprios dos advogados e solicitadores.”, tal como definidos no referido diploma que ademais consigna que o “O título profissional de advogado está exclusivamente reservado aos licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados, bem como a quem, nos termos do respectivo estatuto, reúne as condições necessárias para o adquirir.” (artigo 5º nº 1 do referido diploma).

Embora no Estatuto não se encontre prevista nenhuma norma que verse sobre o exercício da advocacia em causa própria, da interpretação conjugada das normas citadas, cremos não existir qualquer dúvida quanto à respectiva admissibilidade, conquanto, o advogado tenha inscrição válida na Ordem dos Advogados[3].

Assim, conclui-se, a esta parte, pela inexistência de qualquer óbice estatutário que impeça o advogado de exercitar a sua atividade em causa própria, tanto mais que, no caso em apreço estamos no domínio de processo de natureza cível de incidente de alteração da regulação das responsabilidades parentais, que não integra a categoria das exclusões pacificamente acolhidas de impedimento no âmbito do processo penal.

Com relevância para o caso particular que nos ocupa, importa, ainda, salientar que nos termos consignados no artigo 18º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível[4] apenas é obrigatória a constituição de advogado na fase de recurso, daqui se extraindo que podem as próprias partes pleitear por si ou representadas por advogado, pelo que, por maioria de razão, será forçoso concluir que a advogada visada pode intervir no processo em dualidade de posições de parte e advogada em causa própria.

Para dirimir a permissividade do nº1 do aludido artigo 18º, prevê o nº 2 que “É obrigatória a nomeação de advogado à criança, quando os seus interesses e os dos seus pais, representante legal ou quem tenha a guarda de facto, sejam conflituantes, e ainda quando a criança com maturidade adequada o solicitar ao tribunal.”

O citado preceito legal visa prosseguir o duplo objectivo de suprir a incapacidade de acção da criança decorrente da idade e de assegurar a defesa dos seus interesses por técnico legalmente habilitado que revele equidistância, serenidade e desapegamento a todos os intervenientes e partes processuais, designadamente das posições (divergentes) dos pais, pelo que, sempre o Tribunal poderá recorrer a prorrogativa de nomeação de advogado à criança, caso tal se repute necessário à defesa dos interesses da criança.

Conclui-se, assim, que nada obsta a que a visada advogue em causa própria, sendo que, caso o Tribunal considere que tal circunstância contende com a salvaguarda dos interesses da criança, por certo nomear-lhe-á advogado.

 

Existência de conflito de interesses na atuação da advogada visada

A Ilustre Advogada requerente começa por alvitrar a existência de um eventual conflito de interesses na atuação da Advogada visada, alegando que aquela terá, em sua própria representação e do ex-cônjuge, redigido o requerimento de divórcio por mútuo consentimento e demais elementos de instrução do pedido, incluindo o acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais da filha menor do casal.

Da análise da documentação junta ao presente pedido de parecer, extrai-se que por requerimento datado de 28 de fevereiro de 2016, redigido em folha de papel timbrado da sociedade Fr… & Fr… – Advogados, com sede na Rua Melo …, CB... e SSG... (agora representado pela advogada consulente), requereram junto da Conservatória do Registo Civil de C…, o respetivo divórcio por mútuo consentimento, juntando para o efeito, a certidão de casamento, o acordo alcançado quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais da filha menor LBG..., o acordo sobre o destino da casa de morada de família e ainda procuração forense (cuja cópia não nos foi remetida), presumivelmente emitida a favor da sociedade de advogados supra identificada.

Mais resulta comprovado que o sobredito requerimento e acordos foram remetidos a CB... e SSG... em 28 de fevereiro de 2018, através de mensagem de correio electrónico enviada por CFF... através do endereço cff…@gmail.com.

Por consulta efectuada na Ordem dos Advogados, conclui-se que a Dra. CFF... se encontra inscrita no Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados desde 14 de março de 1995, é titular da cédula profissional nº 1…L e tem domicílio profissional na Rua Melo….

Assim, é forçoso concluir que a elaboração dos documentos e acordos subjacentes ao divórcio por mútuo consentimento decretado em 4 de maio de 2018 no âmbito do processo nº 1…/2018 é da autoria da Ilustre Advogada supra mencionada, em representação dos dois membros do agora dissolvido casal.

O supra expendido, contraria a alegação da Advogada Consulente no que tange à intervenção e redação da documentação atinente ao divórcio por mútuo consentimento pela advogada visada, pelo que, em nosso aviso fica prejudicada apreciação da existência de eventual conflito de interesses tal como configurado no artigo 99º do EOA, com especial enfoque para o preceituado no nº 1 e nº 3 de tal normativo.

Com efeito, não se afigura credível que o dissolvido casal tenha mandatado uma advogada para requerer o respetivo divórcio por mútuo consentimento e que a mesma se limitasse a apresentar junto da Conservatória a documentação redigida pela própria constituinte.

No processo judicial ora em curso que corre termos com o nº 1967/22…, pelo Tribunal Judicial da Comarca de L… – Juízo de Família e Menores do B…, para alteração da regulação das responsabilidades figura como requerente na qualidade de mandatária de SSG... a Ilustre Advogada consulente e como Requerida a advogar em causa própria CB..., por decorrência do substabelecimento sem reserva emitido pela Exma. Senhora Dra. JRG... em 24 de março de 2023, não se vislumbrado qualquer intervenção da Advogada que representou os dois progenitores no processo de divórcio por mútuo consentimento.

 

Verificação da existência de algum impedimento na atuação da visada

                Estatutariamente a matéria dos impedimentos e incompatibilidades para o exercício da advocacia encontra-se regulada nos artigos 81º e seguintes do EOA.

                A previsão das normas alusivas às incompatibilidades e impedimentos visam, genericamente, a salvaguarda da isenção do advogado e dignidade da profissão.

Sob a epígrafe “Princípios Gerais”, dispõe o nº 1 do artigo 81º que “o advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com a plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável”, prescrevendo o nº 2 do mesmo preceito legal que “o exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou atividade que possa afetar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.”

Da norma citada resulta uma cláusula geral com o intuito de cumprir a dupla finalidade de defesa não só da relação do advogado com o seu cliente (na dimensão da isenção e independência), mas também na imagem da profissão na sociedade (dignidade).

Neste conspecto conclui-se que existirá incompatibilidade sempre que a atividade, cargo ou função que o Advogado se proponha exercer afete, ou seja suscetível de afetar, a sua isenção e independência e a dignidade da profissão, ou de algum modo contenda com a autonomia técnica, isenção e independência que se exige ao Advogado no exercício da sua profissão de eminente interesse público.

A este propósito citamos Orlando Guedes da Costa “A independência do Advogado traduz-se em plena liberdade perante o poder, a opinião pública, os tribunais e terceiros, não devendo o Advogado depender, em momento algum, de qualquer entidade. A dignidade do advogado tem que ver com a sua conduta no exercício da profissão e no seu comportamento público, com a probidade e com a honra e consideração pública que o Advogado deve merecer.”

Com efeito, o Estatuto ao estabelecer um regime de incompatibilidades visa proteger a generalidade dos demais deveres de isenção, independência e dignidade da profissão de advogado, prevenindo, igualmente, situações de violação do dever de segredo profissional, conflito de interesses, ou angariação de clientela pelo próprio ou por interposta pessoa, de molde a garantir que o Advogado cumpra a sua atuação livre de qualquer pressão, especialmente dos constrangimentos inerentes aos seus próprios interesses ou de influências exteriores.

Como bem se compreende em face do já expendido a propósito da admissibilidade do exercício da advocacia em causa própria, o caso em análise não se subsume a nenhuma das situações previstas no elenco exemplificativo de funções, cargos ou atividades incompatíveis com a advocacia previsto no nº 1 do artigo 82º, nem consta da enumeração dos impedimentos decorrente do artigo 83º, ambos do EOA.

Ao advogar em causa própria o advogado prossegue necessariamente a defesa dos seus interesses próprios, presumindo-se que o fará com o mesmo empenho e isenção que impregna na defesa dos interesses dos seus clientes, pautando a sua atuação pelo rigoroso cumprimento dos deveres deontológicos a que está adstrito.

Da análise dos elementos que instruem o pedido submetido à cognição deste Conselho Regional não é possível concluir pela verificação de qualquer impedimento ou incompatibilidade da advogada visada para a respetiva atuação em causa própria no processo judicial em curso.

 

Do dever de guardar sigilo profissional

A obrigação de sigilo profissional do advogado encontra-se consagrada no artigo 92º do EOA, que consigna no nº 1 que “o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a)    A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b)    A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c)    A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d)    A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e)    A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f)     A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

Mais prescreve o nº 2 do mesmo preceito que “O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.”

No nº 4 do mesmo artigo refere-se que “O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.”

Encerrando o nº 5 do artigo 92º do EOA a cominação da impossibilidade de uso para fazer prova em juízo dos atos praticados pelo advogado em violação do dever se segredo profissional.

A regra em matéria de sigilo profissional é, assim, a da absoluta confidencialidade dos factos de que o Advogado tenha conhecimento, direta ou indiretamente, no exercício das suas funções, ou por causa delas, porquanto o dever de sigilo profissional radica na proteção da privacidade do advogado e dos seus clientes e, consequentemente, da própria liberdade de exercício da profissão.

Daqui decorre que, todos os fatos e circunstâncias que chegam ao conhecimento do advogado por inerência da sua atuação enquanto tal, estão sujeitos ao dever de sigilo, só podendo ser revelados em casos absolutamente excepcionais e mediante e decisão prévia do Presidente do Conselho Regional, nos moldes definidos no Regulamento nº 94/2006 e caso tal “(…)seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes (...). (cfr. artigo 92º, nº 4º do EOA)

 Do expendido decorre invariavelmente que para que os factos revistam caracter sigiloso, é necessário que o conhecimento que o advogado tem dos mesmos lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços e por maioria de razão que a própria matéria em causa revista ab initio carácter sigiloso, excluindo-se, naturalmente, os fatos de conhecimento público e notórios.

Retornando ao caso em apreciação, temos que, a Advogada visada, actuando em causa própria, em 30 de maio de 2023 juntou aos Autos requerimento de resposta/oposição ao pedido de alteração das responsabilidades parentais apresentado pelo progenitor da filha menor do dissolvido casal.

Cotejado o sobredito articulado conclui-se que a Advogada visada convoca vasta argumentação – que em nosso aviso extravasa o objecto do concreto processo em causa e nessa medida revelar-se-á inócua para a decisão a proferir – que adveio ao seu conhecimento na qualidade de parte (ex.cônjuge) e não por decorrência da sua qualidade de advogada.

Embora, nesta fase, se considere que a Advogada visada não incorreu em qualquer violação do dever de sigilo a que está adstrita, não pode deixar de se ressalvar que face à dualidade de posições processuais ocupadas, se impõe com especial acuidade que a advogada paute a sua atuação por um redobrado rigor no cumprimento dos deveres deontológicos que sobre ela impendem, designadamente no concernente ao dever de sigilo profissional.

Mais refere a Advogada Consulente que a visada juntou aos Autos comunicações de correio electrónico de carácter absolutamente confidencial e nessa medida terá incorrido na violação do dever de sigilo.  

Como é consabido, preceitua o artigo 113.º do EOA que sempre que um advogado pretenda que a sua comunicação, dirigida a outro advogado ou solicitador, tenha caráter confidencial, deve exprimir expressamente tal intenção, sendo certo que, em tais circunstâncias, essas comunicações não podem, em qualquer caso, constituir meio de prova, não podendo, sequer, o advogado requerer a sua desvinculação do segredo profissional nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 92.º do EOA.

A sujeição de uma qualquer comunicação à estrita confidencialidade conferida pelo artigo 113º do EOA pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos, a saber, que tal comunicação seja estabelecida entre advogados ou entre advogados e solicitadores; que na mesma se faça menção expressa e inequívoca à confidencialidade nos termos do artigo 113º do EOA; e que tal comunicação contenha fatos sigilosos nos termos configurados pelo artigo 92º, nº 1 do EOA.

A aferição da eventual violação do dever de sigilo profissional impõe, assim, a análise do concreto conteúdo das comunicações em causa. Nesta senda verifica-se que a Advogada visada aquando da apresentação do articulado de oposição ao incidente, juntou aos Autos duas comunicações de correio electrónico trocadas entre si e a advogada consulente. A primeira mensagem de correio electrónico datada de 10 de maio de 2023, com o seguinte conteúdo: “Dra. LP…, Vi que tentou contatar por telemóvel. Peço que nossas trocas de mensagens sejam feitas por esta via. Qualquer outro meio de comunicação não será considerado. Cumprimentos, CB...”

A comunicação supra transcrita é trocada entre advogadas, sem qualquer menção de confidencialidade nos termos do preceituado no artigo 113º do EOA e, bem assim, não contém quaisquer fatos ou circunstâncias sigilosas ao abrigo do disposto no artigo 92º, nº 1 do EOA, pelo que, facilmente se concluiu pela inexistência da violação do dever de sigilo por parte da advogada visada.

Na mesma data a Advogada Consulente remeteu mensagem de correio electrónico à Advogada visada com o seguinte teor: “Exma. Sra. CB..., No seguimento do e-mail que enviou ao Sr. SSG... (dia 9 de Maio) e tendo em conta o conteúdo e teor do mesmo, nomeadamente a informação relativa a incumprimento e cobranças, vimos tecer algumas considerações sobre o mesmo. Leia-se no art.º 112, nº 1, al. e), que enquanto Advogada, ora Requerida, não pode ter qualquer contacto com a parte contrária (Sr. SSG…) que esteja representada por advogada, salvo restritas exceções. Aproveitamos a oportunidade para agradecer à Ilustre Colega que no uso dos seus bons ofícios, evite contactar a outra parte em tudo o que diga respeito ao processo. Uma vez que se encontram na fase de audição técnica especializada, deverá aguardar a conclusão do relatório técnico. (…)”.

Quanto à supra citada comunicação valem as mesmas considerações acima expostas, porquanto, apesar de a mensagem ser trocada entre advogadas não lhe é aposta qualquer menção de confidencialidade nos termos do artigo 113º do EOA e, de igual modo, não contém fatos sigilosos tal como configurados pelo artigo 92º, nº 1 do EOA.

Assim, concluímos, reitere-se que, com base nas circunstâncias concretas apresentadas a este Conselho Regional, que a junção das sobreditas comunicações não constituiu violação do dever de sigilo profissional por parte da Advogada visada.

 

Considerações finais

Ainda na senda da comunicação supra transcrita e, pela relevância que se nos afigura assumir no caso em análise, impõe-se esclarecer a previsão contida no nº1, alínea e) do artigo 112º do EOA. Refere tal preceito legal que “Constituem deveres dos advogados nas suas relações recíprocas: e) Não contatar a parte contrária que esteja representada por advogado, salvo se previamente autorizado por este, ou se tal for indispensável, por imposição legal ou contratual;”

Com todo o respeito que é muito, a Advogada Requerente parece fazer uma interpretação demasiado extensiva do citado preceito legal ao considerar que a Advogada visada, na sua veste de progenitora, não pode efectuar contactos com o progenitor acerca dos assuntos atinentes à filha menor de ambos, incluindo para invocar o incumprimento das responsabilidades deste, apenas porque se encontra em curso incidente de alteração da regulação das responsabilidades parentais em que o mesmo se encontra representado por advogado.

Enquanto não for proferida sentença que altere o actual regime de regulação das responsabilidades parentais, este mantém-se vigente e consequentemente impõe o cumprimento reciproco das obrigações ali consignadas para ambas as partes, incluindo em matéria de pagamento da pensão de alimentos estipulada.

Neste conspecto, cremos ser legítimo que a Advogada visada demande do progenitor o pagamento dos valores devidos e que o faça pelo modo consensualmente estipulado pelas partes na cláusula 6ª do acordo, ou seja, através de mensagem de correio electrónico ou por telemóvel.

A este propósito e, em jeito de conclusão a esta parte, citamos Manuel Leite da Silva[5] que refere “O que estatutariamente se veda através daquele normativo é o contactar, no sentido de se por em contacto, de se entender directamente, não constituindo uma proibição absoluta no sentido de ser vedada a possibilidade de interpelar a parte contrária para o cumprimento de uma obrigação, designadamente de pagamento.”

 

Por último refira-se que,

O pedido de parecer formulado pela Advogada consultente procede indubitavelmente da circunstância de a Advogada visada ter assumido a sua própria representação no incidente de alteração das responsabilidades parentais em que é Requerida na qualidade de progenitora da filha menor sobre quem versa tal processo judicial.

Embora se nos afigure de difícil assimilação que a Advogada visada consiga alhear-se da sua posição processual de Requerida e atuar nas plenas faculdades de autonomia técnica, de isenção e independência na defesa dos direitos e especialmente dos interesses da filha, o certo é que, como se referiu não existe qualquer proibição estatutária em advogar em causa própria e nessa medida, a decisão de adoptar tal conduta partirá sempre da consciência e ponderação individual de cada um, desde que, paute, sempre, a sua actuação pelo estrito e rigoroso cumprimento dos deveres deontológicos a que está vinculada.

Reitera-se que a presente pronúncia cinge-se aos elementos disponibilizados à data do pedido e decorrem da análise minuciosa que dos mesmos foi feita, não tendo a virtualidade de salvaguardar quaisquer outras condutas de qualquer das partes que não tenham sido dadas a conhecer a este Conselho Regional ou supervenientes a apresentação do pedido. 

 

Com as indicadas ressalvas, conclui-se:

 

1 – Da interpretação conjugada dos artigos 66º do EOA e artigo 1º da Lei nº 49/2004 de 29 de agosto (Lei dos Atos Próprios dos Advogados e Solicitados), resulta que os Advogados podem advogar em causa própria;

2 – A ação destinada a alteração da regulação das responsabilidades parentais é de natureza cível, não impõe a obrigatoriedade de constituição de advogado, salvo em caso de recurso e, em consequência, não integra as exceções previstas e pacificamente acolhidas de exercício da advocacia em causa própria em processos de natureza penal;

3 – A mera circunstância de a Advogada visada atuar em causa própria não pressupõe, per si, a existência de qualquer violação das regras e princípios deontológicos a que está vinculada na qualidade de Advogada, sendo que, uma tal conclusão terá necessariamente de se extrair da análise casuística dos fatos e elementos decorrentes da sua atuação processual;

4 – Das considerações vertidas no pedido de parecer formulado no cotejo com os elementos de instrução que foram dados a conhecer a este Conselho Regional, considera-se que a Advogada visada não atua em conflito de interesses, não está afetada por impedimento ou incompatibilidade que a impeça de advogar em causa própria e não incorreu na violação do dever de sigilo profissional;

5 – As conclusões vertidas no presente parecer atêm-se apenas e somente à análise das circunstâncias existentes à data da formulação do pedido e fundam-se na documentação que lhe serve de base, não tendo a virtualidade de salvaguardar ou incluir as atuações processuais das partes, posteriores àquela data, nem abrange quaisquer circunstâncias que por qualquer razão não tenham sido trazidas ao conhecimento do Conselho Regional;

6 – Não cabe a este Conselho Regional a sindicância das decisões dos Advogados, designadamente, ao optarem por advogar em causa própria, cumprindo, apenas ressalvar que nestas circunstâncias se lhes impõe com especial acuidade o respeito pelos princípios e regras deontológicas vigentes;

7 – A competência para apreciação e verificação de condutas passíveis de integrar violação de deveres e princípios ético-deontológicos é dos Conselhos de Deontologia (artigo 58º do EOA);

 

É este o nosso parecer.

 



[1] Advogada inscrita na Ordem dos Advogados, titular da cédula profissional nº 1…L, com domicílio profissional na Rua Melo …, conforme informação disponível no endereço da Ordem dos Advogados;

[2] Disponíveis para consulta no endereço www.oa.pt;

 

[3] Neste sentido veja-se o Parecer nº 17/PP/2021-G do Conselho Geral, que refere que em nenhuma legislação, incluindo o Estatuto vigente, se verifica a previsão a contrario, da impossibilidade do advogado advogar em causa própria, na opinião da Relatora, que subscrevemos, “que o legislador não incluiu esta condição em qualquer destes preceitos porque não tinha necessidade de o fazer, presumindo que só por si, o facto de ser advogado lhe confere esse direito.”

[4] Aprovado pela Lei nº 141/2015 de 8 de setembro e alterado pela Lei nº 24/2017 de 24 de maio;

[5] Relator no processo de parecer nº 18-PP-2017, disponível em www.oa.pt

 

Sandra Gil Saraiva

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